São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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Além da imaginação

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como o Teatro Municipal de Manaus, abandonado, saudoso das folias do látex, também o leitor de "A Caligrafia de Deus", coletânea de contos de Márcio Souza, se sente órfão, esquecido pela verve alegórica e satírica do autor de "Galvez, o Imperador do Acre" (veja texto abaixo).
Aqui, o impulso realista que sempre motivou o escritor e editor, contrabalançado pelo estilo experimental e bem-humorado, toma conta sozinho do palco e acaba disputando, em desvantagem, terreno com meio muito mais ágil e talhado para espelhar fielmente a realidade das cidades engolidas pela floresta (ou vice-versa): o jornal.
Pode a invenção de um ficcionista competir com o rodopio das mercadorias no torvelinho da Zona Franca, genocídios que desaparecem sem deixar traços, obras faraônicas desabando para punir a "hybris" de políticos com cara e lábia de boto? Nesta Amazônia que reproduz em não tão menor escala o caos nacional, o escritor vai deitar suor à toa, se espera representá-lo na exemplaridade das histórias típicas. Balzac extemporâneo, será sempre vencido pela novidade de escândalos maiores, seus registros se perderão na singularidade que se repete "ad nauseam", cada vez com menor poder de revelação.
Em algum momento, Márcio Souza, romancista tarimbado e contista bissexto que, como prova seu livro de estréia, sabe bem disso, rendeu-se à facilidade da cópia da realidade. É o que demonstra esta coleção de histórias manauenses escritas em diversos períodos. A mais antiga, que dá título ao volume, foi publicada originalmente em 1977, na antologia "Malditos Escritores", organizada por João Antônio. Às voltas com as famosas maltraçadas, Márcio Souza acompanha a "caligrafia de Deus" desenhando, paralelamente, dois destinos miseráveis em meio à sujeira, ao calor e ao abandono das favelas de Manaus.
Izabel Pimentel é uma índia meio baniwa meio tikano que se rebela contra o destino das meninas do vilarejo, apanhando de maridos desorientados e alcoólatras, para acabar michê na capital. Alfredo Silva, o Catarro, um vigia sempre embriagado, encantado com as geringonças modernas –calça Levi's e óculos Ray Ban– que acaba ladrão pé-de-chinelo.
Os pingos nos is e o ponto final da vida de ambos se escrevem, como não podia deixar de ser, num "fait-divers". Triste, melancólico, a cara do Brasil, mas curiosamente próximo do boletim diário da violência urbana no }Jornal Nacional.
Cortázar dizia que um bom conto deve ser tenso e intenso. O ritmo de crônica policial do primeiro tem estas qualidades, que também aparecem em "Sete horas na noite de uma cidade", acrescidas de pitadas de realismo mágico. Mas, novamente, o tom documental impede a realização de uma história que se apaga, tímida, comparada a tratamento diverso do mesmo assunto (a transfiguração do homem em bicho em "Meu Tio o Iauaretê" de Guimarães Rosa).
É justamente um recurso narrativo menos simplificador, a variação dos pontos de vista, que faz de "Aquele Pobre Diabo" o ponto alto do livro. Como os demais contos, trata de um tema tipicamente amazônico –o apelo de canto de sereia, visão do paraíso, que a região guarda para os estrangeiros.
A diferença está no tratamento literário, na construção do personagem principal (Jean Pierre, um francês convertido à floresta) através de um coro de rumores, que imita a identidade despojada, liberta das marcas civilizadas, perseguida pelo protagonista. Jean Pierre passa a ser um tecido de boatos. Para os outros, existe por ouvir dizer, vira lenda.
O que se lamenta é o tom quase pitoresco com que os detalhes locais se mesclam às histórias individuais nos demais contos, caso de "O velho curtume do bairro", que encerra o volume. Aqui, a crise existencial de uma antropóloga idealista coincide com a luta ecológica contra uma Manaus de outro tempo, encarnada em afáveis empresários, poluidores, mas estimados pelos empregados e educados em Oxford.
A sensação é a de que a dependência mútua é artificial e ficamos com uma Manaus para estrangeiros (o conto parece pedir pela tradução) e uma personagem politicamente correta de complexidade fabricada, metades coladas à força. Tanto pior.
No mapa da ficção brasileira recente, série de tentativas se não malogradas, indiscutivelmente inferiores às de gerações passadas, resta esperar que Márcio Souza, escritor de talento, reencontre seu caminho perdido entre caboclos e ianomâmis, prendas e piás.

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