São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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História da aberração na Idade Média

LUIS S. KRAUSZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

A idéia de escrever este livro surgiu quando a autora contemplava alguns dos famosos quadros de Hyeronymus Bosch, retratando uma profusão de assustadoras criaturas monstruosas. Claude Kappler ficou intrigada diante do fato de que, em sua época, Bosch foi um artista de grande sucesso, tendo recebido importantes encomendas de casas reais européias.
Sua consagração entre a aristocracia não combina em nada com a imagem que, à primeira vista poderíamos ter dele, como pintor "maldito". O fato de que os quadros de Bosch foram extremamente bem aceitos pela elite em sua época revela uma concepção de mundo na qual os monstros desempenhavam um papel bem diferente do que no mundo contemporâneo.
A realidade material do monstro, no final da Idade Média, era fenômeno indisputado. Com o surgimento dos primeiros grandes viajantes, que chegaram ao oriente, à África e, mais tarde, à América, multiplicaram-se rapidamente os relatos acerca dos animais exóticos encontrados nestas regiões, como o camelo, o rinoceronte, o elefante, além de dezenas de outros, menos verossímeis, mas que imediatamente foram assimilados às imagens de monstros existentes no imaginário ocidental já desde as suas origens, nas tradições bíblicas e clássicas.
Se os relatos verbais dos viajantes corroboravam as representações de monstros que há séculos povoavam o imaginário do Ocidente, ao mesmo tempo ofereciam abundante inspiração aos ilustradores que, baseados nestas descrições, criaram uma profusão de retratos destas criaturas, fundando um rico acervo sobre o qual Bosch pôde construir sua obra magistral.
Estas primeiras viagens às regiões "desconhecidas" do mundo tinham, no encontro com o monstro, uma espécie de culminação. Reforçando as diferenças entre o "eu" e o "outro", a criatura monstruosa comprova também a longa distância percorrida, funcionando como uma coroação da jornada. Assim, convém sempre ao aventureiro viajante ressaltar as chocantes diferenças entre as criaturas vistas "lá" e as conhecidas "aqui".
Num capítulo dedicado à classificação dos monstros, a autora busca refletir a abrangência deste termo, que vai desde aberrações em criaturas conhecidas até seres totalmente desconhecidos, de proporções gigantescas, ou exóticas misturas entre espécies distintas. Kappler mostra que, no imaginário medieval, as feiticeiras eram também consideradas capazes de criar certos tipos de monstros, mesmo nas terras "conhecidas", recorrendo às suas artes ocultas e gerando, por sua vez, uma outra monstruosidade: as execuções públicas, em fogueiras, dos acusados de tais práticas.
Neste período caracterizado pelo medo das trevas, pelo fervor religioso e por uma imaginação exaltada, tudo o que remete ao "totalmente outro" é, imediatamente transformado em objeto de horror, "monstrificado".
A necessidade de se criar monstros, e de projetá-los em criaturas, existentes ou imaginárias, parece ser inerente ao ser humano. A persistência destas imagens na psique humana, onde funciona como repositório para projeção de temores arquetípicos, de sentimentos, desejos ou instintos reprimidos, mostra-nos que, em oposição ao mundo conscientemente organizado, subsiste um outro, imerso nas águas do inconsciente, com o qual nos relacionamos através destas imagens.
Numa época em que já não restam mais esperanças de se encontrar os monstros em terras afastadas –a menos que naves espaciais consigam trazer algum exemplar de outro planeta– resta aos homens buscarem, dentro deles mesmos, o que se encontra por detrás destas imagens.

LUIS KRAUSZ é mestre em letras clássicas pela Universidade da Pensilvânia e pós-graduado pela Universidade de Zurique

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