São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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Um país inteiro esquecido nos sertões

Uma viagem através do Brasil de Guimarães Rosa e Euclides

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

(continuação da pág. 6-1)
Ali, às margens daquela paisagem típica de Minas Gerais, do maribu, do tremedal, guerreavam os bandos de jagunços roseanos. "Grande Sertão" era portanto um romance geográfico por excelência. Mas ninguém nunca me dissera na escola, nunca me mostrara uma foto sequer de uma vereda.
Entretanto, não era difícil imaginar um intelectual gordo debruçado, naquele exato momento, em nova tese sobre "os nomes", "a metafísica" ou "a dicotomia cidade x campo" no romance de Rosa. Um intelectual que não se daria ao trabalho de levantar da cadeira sua bunda flácida para ver de perto um páramo, uma ipueira, uma vereda.
Talvez por isso também –por essa preguiçosa indiferença para com a realidade, típica de um certo comportamento acadêmico– aula alguma da faculdade jamais tratou "Grande Sertão" como um romance onde a sexualidade (a homossexualidade e até mesmo as surpreendentes mulheres roseanas, incluindo as "prostitutrizes" ou "militrizes") é tema fundamental.
Guimarães Rosa teria tido um caso com um daqueles atraentes vaqueiros do sertão mineiro? Pergunta como essa, que soará talvez como verdadeira heresia aos ouvidos da teoria literária, eu me fiz como leitora curiosa, instigada pela fotografia de Guimarães Rosa e sua trupe de vaqueiros, na parede da casa do escritor em Cordisburgo, sua cidade natal, 125 km ao norte de Belo Horizonte.
Os vaqueiros da fotografia –que acompanharam Rosa nas expedições por aquele interior em 1952– eram do mesmo tipo físico alourado, de olhos claros mas pele morena queimada, dos tantos que tinham há pouco passado por nós cavalgando pelas estradas de terra. Verdadeiros Diadorins em couro, em carne e osso.
Pelas estradas estreitas do sertão não passa ninguém. Seguíamos praticamente sós, às vezes durante toda a uma hora que levávamos para percorrer 40 km de terra, cascalho e pedra. Nossa única companhia eram as resistentes cabras balançando seus chocalhos atrás dos restos de folhas verdes na caatinga.
Entre a cidade de Euclides da Cunha –330 km a noroeste de Salvador– e o município de Canudos, a 72 km, vimos as primeiras ossadas de gado morto de sede e de fome. Imagens literárias, imagens reais de uma seca que se perpetua desde 1605.
Num ponto da estrada, a cena inédita para nós: um bando de abutres cobria com seus fraques negros, seus trajes de festa, as carcaças do gado que alimentava o banquete. Bateram asas quando da aproximação dos dois idiotas do litoral, suas câmeras fotográficas, seus pés grandes barulhentos, suas caras boquiabertas.
Mais adiante, na estrada entre Uauá e Caraíba, as carcaças ganhavam ares de instalação de artes plásticas. Algum artista anônimo se dispusera a recuperar esqueleto e couro do gado morto, erguer com varas, dar ares de coisa viva às vacas e aos bezerros.
E lá estava. Num recuo à beira da estrada, o gado empalhado, mumificado ao acaso, exibia os esgares da agonia da fome. Não descobrimos o artista anônimo, não havia casas, não havia gente alguma por perto. O sertão seguia desabitado.
Dias depois, encontramos em "Os Sertões" a explicação para parte daquele fenômeno. Euclides da Cunha narrava episódio semelhante de empalhamento casual, provocado pela "secura extrema dos ares":
"Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as cercanias de Canudos,(...) encontramos, no descer de uma encosta, anfiteatro irregular, onde as colinas se dispunham circulando um vale único. (...)
O sol poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão, e protegido por ela –braços largamente abertos, face volvida para os céus– um soldado descansava.
Descansava... havia três meses.
Morrera no assalto de 18 de julho. Caíra, certo, derreando-se à violenta pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os mortos, não fora percebido (...).
E estava intacto. Murchara apenas. Mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado, retemperando-se em tranquilo sono, à sombra daquela árvore benfazeja. Nem um verme –o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria– lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.
Os cavalos mortos naquele mesmo dia semelhavam espécimes empalhados de museus. O pescoço apenas mais alongado e fino, as pernas ressequidas e o arcabouço engelhado e duro."
Na última curva do caminho entre Bendegó e Canudos, depois do gado, vimos a gente –os mesmos flagelados de 1605, das vidas secas de 1915, das páginas sempre contemporâneas desses romances como "O Quinze".
Há mais de 200 anos tinha caído ali mesmo, perto daquela estrada batida por onde passávamos, o grande meteorito que se chamaria depois "meteorito de Bendegó". Mas a gente da seca não sabe disso. Uma família inteira de flagelados estava parada na beira da estrada –descansando talvez ou morrendo–, o olhar perdido para além, muito além de nossa presença, do brilho de metal colorido do nosso Fiat 1.6 mpi. Não lhes dizíamos nada.
O hálito quente do bocejo brasileiro soprava bem na cara daquela gente rasgada, faminta, desconhecidos tão conhecidos nossos. Anoitecia. Paramos o carro no cascalho da estrada, apagamos todos os faróis e luzes. Então a escuridão desabou sobre nós, não havia uma única luz artificial nas redondezas –o céu era pura lua e estrelas, enquanto o cinza da caatinga virava branco, branco de neve, como se gravetos e arbustos fossem pinheiros carregados de neve numa paisagem européia.
Naquela miragem não sabíamos quem éramos nem onde estávamos –ou talvez não saibamos na realidade, o país grande demais (e bonito demais) para nós que não merecemos, não conhecemos, nem nos interessamos.

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