São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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O circo e a solidez do pão

JOSÉ PAULO PAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Acho que sou um brasileiro relapso: não gosto de Carnaval nem de futebol. De Carnaval até que eu gostava antigamente –muito antigamente–, antes de banqueiros do jogo do bicho em busca de respeitabilidade e figurões ou figurinhas mundanas em busca de promoção pessoal o terem transformado num supershow de kitsch, ao gosto da babaquice turística.
Quanto a futebol, embora me seja indiferente em se tratando de campeonato estadual ou nacional, a coisa muda de figura quando o jogo é da seleção. Aí, como todo brasileiro que se preze, também me deixo empolgar. A ponto de, na partida decisória contra a Itália, ter desistido de assistir ao segundo tempo: não me achei com coração suficientemente forte.
Todavia, solidarizei-me discretamente, da minha cadeira de telespectador, com o entusiasmo da enorme multidão que aguardava o time de Parreira no Recife e em Brasília. Digo discretamente porque, desde o fatídico 1964 que as institucionalizou na marra, criei ojeriza por patriotadas.
No caso da conquista do tetra, ela é porém inteiramente justificável. Tanto mais quanto vem mostrar que, ao se enfeitar de verde e amarelo para uma festa que era toda dele, o povão estava cônscio de que nem a farsa de Collor nem os escândalos da quadrilha do Orçamento e de seus cúmplices no Congresso chegaram a aviltar irreparavelmente as duas cores pátrias.
Aliás, em matéria de consciência popular, vi um exemplo notável outro dia. Uma emissora de TV pôs uma repórter na rua perguntando aos passantes se seriam capazes de desistir de acompanhar a partida final do Brasil se, em troca, no mesmo horário, pudessem encher gratuitamente seu carrinho de compras num supermercado. As respostas forma unânimes em favor do carrinho gratuito. Como se vê, entusiasmo patriótico-esportivo não envolve necessariamente alienação nem perda do sentido de realidade que distingue a solidez do pão da insubstancialidade do circo.
Mais tarde, no mesmo dia da chegada de nossos jogadores ao Recife e a Brasília, assisti por alguns minutos, quem sabe por algum obscuro impulso masoquista, a uma dessas ridículas mesas redondas em que meia dúzia de "especialistas" teimavam ainda em discutir, depois da prova do "fait accompli", os erros táticos do time de Parreira.
É de propósito que, em vez de falar em seleção, falo em time de Parreira. Pois era contra o técnico que se voltavam, a uma só voz, os tais "especialistas". Na tentativa de salvar caras insalváveis, martelavam agora na surrada tecla do "venceu mas não convenceu". Isso depois de terem dado com os burros n'água ao antecipar, com a arrogância da sua falsa ciência, que Parreira levaria o time ao desastre.
O ridículo do espetáculo me trouxe à lembrança a anedota da mãe que leva o filho ao psicólogo. Este o examina e constata que tem QI baixíssimo. Desesperada, ela pergunta o que vai ser do menino depois de ela morrer. O psicólogo a consola: "Não se atormente, minha senhora. Na pior das hipóteses, ele sempre poderá ser comentarista esportivo."
O pior é que, das mesas redondas e das transmissões esportivas, costumam participar, ao lado de profissionais do ramo, ex-jogadores improvisados em comentaristas. Com a mesma auto-suficiência daqueles, criticam severamente as falhas e irregularidades de desempenho de seus antigos colegas. Parecem ter esquecido de que, quando estavam na ativa, cometeram falhas idênticas e tiveram desempenho igualmente irregular no mesmo gramado. Gramado que, na hora da batalha do gol, não é nenhum tabuleiro de xadrez onde cada jogador disponha de todo o tempo do mundo para escolher a opção mais vantajosa. A decisão tem de ser tomada em frações de segundo, no acesso da luta, não pela inteligência calculadora mas por uma intuição quase milagrosa.
É bem verdade que, em matéria de sapiência, os cartolas do comentarismo esportivo não estão sozinhos. Têm a seu lado, como se costuma dizer, 160 milhões de técnicos não menos sapientes, que também disseram cobras e lagartos do técnico da seleção e lhe recomendaram toda a sorte de substituições salvadoras. Felizmente ele lhes fechou os ouvidos e, respaldado pela confiança e respeito que soube conquistar dos seus comandados,levá-los ao Tetra ambicionado.
O calor com que milhões de ex-críticos foram receber Parreira e a seleção no Recife, em brasília e no Rio, representa uma espécie de ritual expiatório. Cujos efeitos terapêuticos não vão durar sequer até a próxima Copa. Para não perder o emprego, os sabichões do comentarismo cuidarão de evitar que isso aconteça.

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