São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
Próximo Texto | Índice

Filhos da desinformação

Em setembro próximo, no Cairo (Egito), a maioria dos países do mundo vai se reunir para discutir em profundidade um assunto que diz respeito ao futuro do próprio planeta. É a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, patrocinada pela Organização das Nações Unidas.
No Brasil, como em todo o mundo, o tema vem suscitando polêmica. De um lado, há a posição dos setores ligados principalmente à Igreja Católica que se opõem a todo tipo de programa de planejamento familiar que inclua os chamados métodos não-naturais de evitar filhos. De outro lado, estão os que vêem no aumento da população, principalmente na Ásia, África e América Latina, uma ameaça ao desenvolvimento humano.
A discussão não é nova. Foi proposta por Thomas Malthus há mais ou menos uns 200 anos. Para o economista inglês, o potencial de crescimento da população é incomparavelmente maior do que o da Terra de produzir meios de subsistência para o homem. Como consequência, Malthus previa que a humanidade adequar-se-ia à capacidade do planeta de produzir alimentos através de guerras, pestes, fome e todo gênero de vícios.
Embora as previsões de Malthus não se tenham realizado "ipsis litteris", o debate atual não foge muito a uma discussão entre os otimistas –que acreditam que a tecnologia poderá acabar compensando o cescimento populacional e suas demandas– e neomalthusianos –que vêem nos bolsões de miséria do Terceiro Mundo e nos primeiros sinais de desgaste ambiental do planeta uma confirmação dos temores do economista inglês.
De fato, a população da Terra, segundo projeção do Banco Mundial, vai saltar de 4,1 bilhões em 1990 para 8,6 bilhões em 2050 e para 10,2 bilhões em 2100. Como nota John Bongaarts, diretor de pesquisa do Conselho de População, de Nova York, em artigo publicado na prestigiosa revista "Science" de 11 de fevereiro de 1994, graças à expansão de programas de planejamento familiar, as taxas de crescimento da população vêm declinando desde os anos 60, mas o número absoluto de pessoas vem aumentando de forma ainda considerável. O fenômeno ocorre porque, mesmo que as taxas de crescimento caiam, a variação se dá sobre uma base populacional maior.
É difícil avaliar o que esse aumento pode significar no futuro. Uma coisa, porém, é certa. Mesmo em países pobres, mulheres ou casais mais instruídos têm menos filhos, o que permite inferir que muitos dos nascimentos só ocorrem por falta de informação. Segundo Bongaarts, a taxa de fertilidade não desejada ficará em torno de 20% entre 1995 e 2000. E a gravidez indesejada cria um terrível subproduto do ponto de vista humanitário: o aborto. São 25 milhões de casos por ano em todo o mundo, muitos dos quais ilegais e praticados em condições subumanas, matando ou mutilando inúmeras mulheres.
Uma outra terrível distorção que paradoxalmente tende a aumentar o número de filhos por casal são os altos índices de mortalidade infantil nas regiões mais pobres do planeta. Em primeiro lugar, muitas mortes entre crianças exigem que o casal tenha um número maior de filhos para tentar garantir que pelo menos alguns deles cheguem à idade adulta. Em segundo lugar, como o número de mortes de filhos e seu espaçamento são imprevisíveis, os pais tendem a tornar-se mais fatalistas, aceitando quase que como naturais tanto os óbitos como os nascimentos de seus filhos.
Evitar que mulheres tenham acesso a métodos modernos de contracepção parece portanto ser um grande erro, seja do ponto de vista econômico, seja do ponto de vista humanitário. Para além dos imprevisíveis impactos negativos de uma superpopulação mundial, negar-lhes a pílula ou qualquer outro meio de evitar filhos é privá-las não do pecado, mas do conhecimento, do direito de decidir, enfim, do livre-arbítrio.

Próximo Texto: Papai Noel real
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.