São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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Cardoso e o nascimento do Brasil

ALAIN TOURAINE

Em todo o mundo, da Europa ex-comunista à América Latina, dos países social-democratas europeus ao Egito, o Estado mobilizador e modernizador se esgotou, colonizado pela "nomenklatura", apodrecido pela corrupção ou entorpecido pelo corporativismo.
Todos os países se vêem assim arrastados por uma grande limpeza liberal, que libera a economia do controle, da tutela do Estado e da classe política.
Nada garante que essa revolução liberal permita sempre o saneamento da economia; muitas vezes, aumenta inclusive drasticamente as desigualdades sociais e a marginalização; mas os poucos países que querem manter o antigo sistema estão em pior situação que os demais: é o caso da Romênia, na Europa do Leste, e do Brasil.
No último caso, isso se explica pelos êxitos obtidos durante muito tempo pelo modelo nacionalista, bismarckiano, de Getúlio a Juscelino e inclusive a Delfim. Mas o Estado modernizador e redistribuidor, após sucumbir à ditadura militar antipopulista, nunca recuperou a força que teve no governo Kubitschek.
A Argentina, cuja situação social era melhor e a econômica bastante pior que a do Brasil, esperou estar em plena catástrofe para passar de uma economia de rendas a uma economia de produção, como diz o ex-secretário de Estado Ikonicoff. Mesmo aqueles que avaliam negativamente os métodos de Menem reconhecem o êxito do Plano Cavallo.
O Brasil deve, por sua vez, tomar as grandes decisões que se impõem a todos, romper com toda espécie de protecionismo e clientelismo e comprometer-se ativamente com uma economia internacional, na qual tem grandes oportunidades de ocupar um importante nicho, já que é o único país da América Latina que dispõe de agentes econômicos modernos –apesar da recente deterioração patronal, dos sindicatos e da administração central–, de um forte potencial intelectual e técnico e de uma vitalidade que suscita a admiração geral.
O Brasil deve fazer uma escolha análoga à que fizeram os Estados Unidos no início do século, quando o Partido Republicano, que representava ao mesmo tempo os empresários e os sindicatos do leste, triunfou frente ao Partido Democrata, que representava os agricultores apoiados pelo Estado.
Quando tiver rompido claramente com um protecionismo e um clientelismo que transformaram o país num mercado político desorientado e corrupto e fizeram disparar a inflação, o Brasil saltará para a primeira fila dos países industrializados.
Mas esta é apenas uma das faces da realidade brasileira. A outra é que o país é o campeão mundial da desigualdade social, constantemente agravada por uma inflação que aumenta perigosamente a distância entre ricos e pobres.
Uma política modernizadora puramente liberal é, portanto, impossível no Brasil, e o apoio concedido pela opinião pública a Lula pode acabar se transformando em força de ruptura se o Brasil abrir suas portas aos Chicago Boys.
Por isso, há alguns anos, Lula, fundador de sindicatos modernos no ABC de São Paulo e defensor do Brasil moderno, podia aparecer como o candidato mais capaz de unir o duplo objetivo de modernização econômica e de transformação social. Mas, no PT, o velho Brasil comeu o jovem.
A CUT, sindicato industrial e negociador, se converteu basicamente numa força de proteção do setor público e semi-público, e os temas comunitários, de inspiração cristã, desempenham hoje um papel mais paralisante do que radical. A defesa dos interesses corporativistas e dos protecionismos econômicos e sociais é um objetivo tão carente de realismo e tão perigoso como um liberalismo à polonesa ou à Berlusconi.
Na verdade, há uma única solução possível para o Brasil: aceitar a abertura liberal e vinculá-la fortemente a uma política de reformas sociais de grande alcance. Esta solução se personifica em Fernando Henrique Cardoso.
Está carregada de tensões, e está claro que o PFL ou a Globo, ao apoiar este candidato, o que pretendem é sobretudo afastar Lula, e tentarão impor ao novo presidente uma política puramente liberal. Mas os meios financeiros sabem que seus interesses só podem ser protegidos se o país escapar do caos ou da violência. Suas possibilidades de pressão são e serão escassas, assim como é e será escassa a capacidade de iniciativa política dos que representam os velhos setores protegidos pelo Estado.
Mas a força principal de Cardoso é que muitos brasileiros estão convencidos da urgente necessidade de romper com um sistema exausto e da possibilidade que tem seu país de levar a cabo uma reestruturação sólida e duradoura. Se Cardoso não for eleito, o Brasil corre o risco de afundar no caos e na violência, porque as necessidades da economia e as exigências da sociedade se tornarão imediatamente incompatíveis.
Que Cardoso, o mais respeitado dos sociólogos latino-americanos, democrata que demonstrou suas convicções e sua valentia durante a ditadura, político cuja integridade e dedicação ao bem público estão fora de qualquer dúvida, se tornará o próximo presidente do Brasil é quase uma evidência.
Mas não é só um novo presidente o que o Brasil necessita, mas um grande presidente, que faça seu país atravessar a zona de tempestades e que o conduza a terras de prosperidade e de justiça.
Cardoso será este grande presidente; é o único homem de Estado de todo o continente capaz de associar com força estabilidade econômica e luta contra as desigualdades sociais.
O que a Bolívia, o Chile, o México e a Argentina conseguiram em parte, o Brasil pode e deve fazer com paixão maior, mobilizando sua inteligência e seu valor. Deve-se acolher como uma oportunidade excepcional para o Brasil e para o mundo a chegada de Cardoso à Presidência do Brasil.

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