São Paulo, terça-feira, 2 de agosto de 1994
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Diretor vivia em guerra com o cinema

JOÃO GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Se houve um gênio na história do cinema, foi Orson Welles (1915-85). Talvez tenha havido outros tão bons ou até melhores que ele, mas a nenhum se aplica com tanta propriedade o qualificativo "gênio", com tudo o que sugere de talento, inteligência e originalidade, mas também de capricho, insanidade e inconstância.
Como se sabe, Welles chegou ao mundo do cinema de um modo inusitado. Garoto prodígio do teatro e do rádio, recebeu carta branca da RKO para realizar seu primeiro longa-metragem graças à fama instantânea que conquistou ao espalhar o pânico com a transmissão radiofônica de "A Guerra dos Mundos", em 1938.
"Em qualquer outro país, eu iria para a cadeia. Como estava na América, fui para Hollywood", brinca o cineasta no semidocumentário "Verdades e Mentiras".
Entretanto, sua relação com a indústria cinematográfica nunca foi pacífica. Os antigos habitantes da "cidade das redes" nunca o engoliram como um igual. Viam-no como um menino mimado, egocêntrico e pretensioso –o que não deixava de ser verdade. Depois de seu primeiro passeio pelo estúdio, o diretor declarou: "É o melhor trenzinho de brinquedo que uma criança poderia querer ganhar."
A despeito do deslumbramento, Welles considerava o cinema uma arte irritantemente limitada, em comparação com o teatro e a literatura. "A gente precisa odiar e considerar a câmera como uma máquina detestável, chicoteá-la como a um escravo, em vez de se aproximar dela de joelhos", disse à biógrafa Barbara Leaming.
A indústria nunca o perdoou por isso. A partir dessa inusitada estréia, a obra do cineasta foi marcada pelas dificuldades, confusões e brigas judiciais.
Espalhou-se pelo mundo do cinema a imagem de Welles como um homem incapaz de levar até o fim seus projetos. Por um emaranhado de complicações, diversos deles ficaram inacabados: "It's All True", "Don Quixote", "Chimes at Midnight", "The Other Side of the Wind". Outros foram montados pelo estúdio à revelia do diretor: "Soberba", "Mr. Arkadin", "A Marca da Maldade". Isso sem falar nos planos que nem saíram do papel, entre eles as adaptações de "Heart of Darkness", de Conrad, e "As Aventuras do Sr. Pickwick", de Dickens, além de uma biografia de Cristo.
Até onde a culpa desses fracassos cabia ao cineasta e até onde aos estúdios é algo difícil de precisar. Em todo caso, é inegável que seu talento cabia a muito custo nos limites da indústria.
Numa visão retrospectiva de sua obra, o que fica como traço marcante é a idéia de exuberância e contradição. "Para mim, a menos que seja alucinante, e que se transforme numa espécie de experiência, o filme não adquire vida", dizia Welles, que se aborrecia com os filmes que mostram "pessoas sentadas, descascando batatas".
Estilização barroca e realismo, cinismo e paixão, humor e tragédia são as marcas paradoxais da obra de um homem também erigido em contradições: boa-vida e "workaholic", egocêntrico e generoso, perfeccionista e displicente, gênio e charlatão, Welles era como os principais personagens que interpretou (Kane, Falstaff, Othelo, Macbeth, o Quinlan de 'A Marca da Maldade'). Um gigante vulnerável, um urso ferido uivando para a lua.(JGC)

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