São Paulo, quarta-feira, 3 de agosto de 1994
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Crianças adultas vivem ilusão da felicidade

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Parece estar na moda entre as crianças um brinquedo novo, patrocinado pelo apresentador Gugu: trata-se do boneco "Armstrong". Reproduz o físico e as feições do malhador de academia; é um adulto loiro, estatura por volta dos 30 cm, olhos azuis, dentes brancos expostos num rito boçal que não se sabe se é sorriso ou consequência do esforço muscular em que se engajou.
A graça do boneco está no fato de que ele estica. Ou seja, se você puxar um braço dele, conseguirá prolongá-lo a um ou dois metros de extensão. Sob a pele de borracha, uma espécie de goma elástica permite às crianças os mais surpreendentes exercícios de investigação fisioterápica.
Como nos instrumentos de tortura medievais, em que o carrasco grava uma manivela e a vítima era esticada até que se rompessem seus ligamentos, duas crianças, segurando as extremidades do corpo de Armstrong, podem repuxá-lo até que se transforme numa tripa tensa e ainda sorridente. Claro que, depois disso, Armstrong volta ao normal, retraindo-se nos seus nódulos de poliuretano.
A invenção desse boneco resulta, a meu ver, de dois fatores. O primeiro é a atração infantil pela elasticidade, pela expansão física (metáfora de crescimento) e pela conjunção miraculosa entre aquilo que é gosmento e aquilo que é sólido.
Nesse sentido, Armstrong descende do chiclete de bola, também capaz de estender-se em filações infinitas de borracha, e de outro brinquedo de sucesso, o material verde, inodoro e mais assim nojento que atende pelo nome comercial de "Geleka": é uma massa fria e grudenta que você pode jogar na parede, no prato, no azulejo da cozinha, no cabelo da irmãzinha, e colada nesses lugares parece dotar-se de vida, vida escorregadia e repelente como num filme de ficção científica.
O segundo fator que explica a aparição de Armstrong é a moda, já antiga, dos bonecos adultos. Durante muito tempo, bonecas eram coisa de menina, e, mais do que isso, bonecas eram bebês, filhos imaginários, criancinhas.
Creio que Barbie e Susi foram as primeiras bonecas "adultas": dondocas a quem cabia vestir e pentear, e não mais dar mamadeira. Depois, vieram os super-heróis e congêneres, como "Falcon", espécie de Barbie masculino, vendido em diferentes figurinos de aventura.
Armstrong é o boneco adulto transformado em gelatina resistente.
Não será, também, a imagem que as crianças de classe média e alta fazem de autoridade de seus pais? Infinitamente flexível, sujeita a toda sorte de pressões, e mesmo assim capaz de retornar à sua estatura normal, de resto diminuta e cômica...
Escrevo este artigo pensando na edição do caderno "Mais!" de 24 de julho, que tinha como tema a situação da infância na sociedade contemporânea.
É claro que páginas e páginas poderiam ser escritas sobre os menores abandonados, e prostituição de crianças etc. Focalizo a atenção, contudo, na criança burguesa, e na relação com os pais que ela tem. Ou melhor, não tem, porque a regra são os pais separados, a constelação de padrastos amigável, avós e "babysitters" amadores.
O psicanalista Contardo Calligaris traça, com notável poder de síntese, um quadro assustador das crianças de classe média hoje. Elas seriam o repositório das ilusões de felicidade que ocuparam a mente de seus pais nos idos de 68. Queremos que as crianças sejam felizes, (e Calligaris cita Freud) porque projetamos nelas uma expectativa de felicidade que não pudemos alcançar.
O resultado, segundo Calligaris, é horrendo: "O 'adulto em miniatura' que amamos... deveria nos fornecer a imagem de uma felicidade também sexual, mas preferimos que a farsa se jogue entre anões. Assim não hesitamos em incentivar patéticas reuniões dançantes e shows no escuro ante estupefatas e angustiadas crianças de sete, oito, nove anos."
Ele se refere ao espetáculo, que também tive o desprazer de assistir, dessas festinhas em bufês infantis onde pré-pré-adolescentes já dançam o rock sob luz negra.
Só que, pessoalmente, acho toda reunião dançante patética, e adolescentes de quinze anos dançando no escuro, ou quarentões botando para quebrar, participam de uma ilusão de felicidade sexual igualmente triste.
Não sei, ademais, se esse empenho em tornar as crianças mais adultas e sexualizadas, se essa vontade de delegar-lhes a felicidade que não tivemos, é de exclusiva responsabilidade dos pais.
Se o programa da Xuxa sexualiza estupidamente as crianças, e se há bailes de rock com pessoinhas de sete ou oito anos, isso se deve a mais fatores do que a frustração de nossa parte com relação à infância que tivemos.
Calligaris não os ignora –no fundo, é uma reflexão sobre a felicidade o que está em pauta. Se os adultos concebem a felicidade como aquisição de bens, um carro coreano ou um telefone celular, é normal que as crianças vivam querendo brinquedos, botinhas da Xuxa etc.
Naturalmente, é a máquina do mercado que torna a criança mais adulta e adulto mais infantil, já que ambos procuram talismãs de felicidade nos bens de consumo mais próximos.
Há outros problemas, contudo. O fato é que a organização familiar tradicional desapareceu. As mulheres têm outras ambições e expectativas além da dedicar-se aos filhos.
Isso produz uma ambiguidade infernal. Ter um filho é ainda sinônimo de realização. Mas cuidar do filho é sinônimo de frustração no campo profissional, pessoal etc.
Crise de autoridade
A situação é ao mesmo tempo confortável e ansiogênica para as crianças. De um lado, sentem que podem exigir muito mais de uma mãe. Poucas vezes têm a coragem de dizer "não". Dizem "vamos ver", "depois", "mais tarde".
O fenômeno simétrico ocorre quando a mãe dá uma ordem ao filho: "penteie o cabelo", "vá dormir", "hora do banho". A criança não diz "está bom", ou "não, não quero". Diz apenas: "daqui a pouco", "já vou", "daqui a pouquinho".
Tudo isso gera ansiedade. Em primeiro lugar, porque muitas vezes o que a criança está testando é a autoridade dos pais. Suponho que ela precise disso –e não encontra.
Em segundo lugar, porque nessa crise de autoridade está sendo encenada e culpa e o mal-estar dos pais frente às crianças. Os pais vivem na ideologia anti-repressiva, de estímulo à espontaneidade e à liberdade que talvez não tenham tido. Imagina-se então que a pura liberdade dê às crianças um poder de "auto-expressão" e de "auto-realização" (ideais adultos, e não infantis) jamais alcançado antes.
O que é a meu ver um erro. Nenhuma criança é original, nenhuma criança é um gênio que se deve não reprimir. Aulas de artes e de português, nas escolas modernas, padecem dessa ilusão. Querem estimular, e elogios, a pretensa "criatividade" infantil. Mas a criança está mais interessada, nessa fase da vida, em absorver modelos externos do que em "expressar" sua personalidade, ainda malformada. E não há originalidade ou genialidade possível sem domínio da técnica tradicional. Ensinar as crianças a desenhar direito, em vez de elogiar qualquer rabisco, ajudaria muito.
Volto ao boneco Armstrong. Ele é como os pais: puxe o máximo que você puder, e ele continuará sorrindo. Nossas crianças certamente são menos traumatizadas do que as de antigamente. Mas são muito mais ansiosas, e seus pais muito mais frustrados. Estes parecem dizer aos filhos o que sempre se disse à pessoa amada: "Você me prometeu a felicidade... mais só me fez mais infeliz!".

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