São Paulo, quinta-feira, 4 de agosto de 1994
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Cópia maltratada destrói obra de Murnau

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Primeiro, a boa notícia: "Aurora" (Sunrise), para muitos a obra-prima de F. W. Murnau (1889-1931), acaba de sair em vídeo no Brasil. Agora, a má notícia. Má, não, péssima: a cópia é um horror.
Para evitar esse contratempo, a Continental Home Vídeo precisaria ter utilizado como matriz a versão em vídeo-laser japonesa, já que todas as cópias em vídeo, inclusive as comercializadas no mercado norte-americano, são iguais à que as nossas locadoras acabam de receber: cinzentas, sem nuance alguma. E o forte de "Aurora" é o extraordinário trabalho fotográfico de Charles Rosher e Karl Struss.
Na versão brasileira, perdeu-se, ainda, a inventividade "naif" dos entretítulos originais, em inglês, desenhados por Katherine Hilliker e H.H. Caldwell, cujas letras adquiriam por vezes as formas dos objetos designados. Em compensação, ganhamos o que nem todas as versões estrangeiras possuem: a música pós-sincronizada de Hugo Riesenfeld. Infelizmente, mal dá para ser ouvida, pois a qualidade do som se equivale à das imagens.
Em seu livro sobre Murnau, Lotte H. Eisner não precisa em minutos a duração de "Aurora". Em outro estudo famoso, Charles Jameux aponta 117 minutos. O mínimo que as enciclopédias e guias disponíveis registram são 110. Embora só tenha 95, a versão brasileira, que confrontei superficialmente com o roteiro do filme, publicado pela revista "Avant- Scène du Cinema", me pareceu, por incrível que pareça, completa.
"Aurora" foi o primeiro filme rodado por Murnau na América, onde desembarcou em julho de 1926, importado por William Fox, que se entusiasmara com o antepenúltimo clássico alemão do cineasta, "A Última Gargalhada" (Der Letzte Mann). Teve a seu dispor todos os recursos disponíveis na época e a mais ampla e irrestrita liberdade para criar. Pôde até usar seu roteirista favorito, Carl Mayer.
Não precisou de uma grande história para dar curso ao que tinha em mente: conciliar a nostalgia pastoril dos americanos com o fascínio germânico pela cidade grande tentacular e sórdida, num grande poema cinematográfico de cunho universalista.
Pegou uma das "histórias lituanas" reunidas por Hermann Sudermann em "Uma Viagem a Tilsit" e adaptou-a a uma paisagem apátrida, habitada por personagens sem nomes, que na realidade são arquétipos de uma triangulação universal: a esposa e mãe abnegada (Janet Gaynor), a mulher fatal destruidora de lares (Margaret Livingston) e o marido que se deixa seduzir pelos seus encantos (George O'Brien).
A intriga em si, rala e insípida, é o que menos importa no filme. Junção lírica do expressionismo alemão com a tecnologia hollywoodiana, "Aurora" é um dos maiores exercícios de estilo da história do cinema.
Nos fantásticos cenários de Rochus Gliese, Murnau criou um microcosmo espiritual e espacialmente unificado, onde forças antagônicas se sucedem –dia e noite, sol e lua, aurora e crepúsculo, amor e morte, cidade e campo, bem e mal, paz e agitação, pecado e redenção, natureza e artificialismo- desequilibrando e harmonizando a existência de um casal como outro qualquer.
A tensão entre os temas e a alternância de ritmos e tonalidades dão ao filme a aparência de uma sonata visual, sobretudo arrebatadora quando Murnau movimenta sua câmera. "Aurora" é o encontro de Bauhaus com Griffith, a ressurreição de Fausto e Nosferatu no bucolismo transcendentalista de Thoreau. Pena que você não possa ver tudo isso com a necessária nitidez e os seus imprescindíveis contrastes.

Vídeo: Aurora (Sunrise)
Diretor: F. W. Murnau
Elenco: George O'Brien, Janet Gaynor
Produção: EUA, 1927
Lançamento: Continental (tel. 011/284-9479)

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