São Paulo, quinta-feira, 4 de agosto de 1994
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O feitiço do tempo

RICARDO ANTÔNIO SILVA SEITENFUS

"O mundo é um espetáculo semelhante aos Jogos Olímpicos: uns fazem negócios, alguns competem e outros contentam-se em observar."(Pitágoras, séc. 6 a.C.)²
Em 1991, um golpe militar destituiu Jean-Bertrand Aristide, o primeiro presidente eleito em 186 anos de história independente do Haiti. Desde então, a extraordinária capacidade dos golpistas em manipular a esperança de uma solução pacífica arrasta o caos até seu inevitável epílogo violento.
Os astutos militares haitianos sempre tiveram como aliado o princípio da não-ingerência nos assuntos internos de um país soberano. Porém já existe a possibilidade de uma intervenção armada, a primeira a ter como objetivo a restauração de um governante eleito democraticamente. Este é, do ponto de vista da história das relações internacionais, o cerne do drama haitiano.
A decisão do Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas (31/07/94), que autoriza o emprego de todos os meios necessários para restabelecer o governo constitucional do Haiti, parece ser de ordem ética e humanitária. A invasão estrangeira seria uma vitória da sociedade civil contra o Estado e da solidariedade contra o egoísmo.
Análise mais acurada, contudo, demonstra que inexiste no Haiti um conflito étnico (como Ruanda) ou agressão estrangeira (como na Guerra do Golfo), e sim uma guerra entre o próprio Estado e sua população.
O governo militar atribuiu à ONU (Organização das Nações Unidas) e à OEA a organização das eleições presidenciais de 1990, comprometendo-se a acatá-las. Nove meses depois golpeou a democracia e instaurou o terror. Para distender a crise, assinou diversos acordos internacionais que estipulavam prazos para o retorno de Aristide e o restabelecimento da legalidade, todos eles descumpridos injustificadamente.
Assim, é incompreensível a posição hoje adotada pelo Brasil, apegada a um sofrível juridicismo. No Conselho de Segurança da ONU, onde ocupamos uma cadeira de membro temporário, nosso representante absteve-se na votação, seguindo os passos da China. Fê-lo em "boa companhia": Pequim vota sobre o Haiti tendo como parâmetro a violenta ocupação que empreende sobre o Tibete e a repressão nas províncias de Qinghai e Xinjiang.
O "falso progressismo" do Brasil, compartilhado por diversos Estados latino-americanos, ressalvada a posição argentina, acaba redundando em uma grande hipocrisia. É como se a liderança norte-americana no deslinde da crise haitiana representasse uma ameaça a todos os países do continente. Resistir seria a única forma de proteger o interesse nacional destes Estados frente à virtual ingerência dos EUA em seus assuntos internos.
Ocorre que a ação coletiva no Haiti não pode ser associada às intervenções que Washington promoveu na América Latina, de forma unilateral e por seus próprios interesses, seja inspirados pela doutrina Monroe ou no embate contínuo da Guerra Fria.
O precedente aberto pela possível invasão do Haiti certamente nada tem a ver, por exemplo, com a Amazônia, as minorias indígenas ou as violações de direitos humanos que ocorrem no Brasil. A situação semelhante, ou seja, que justificaria tratamento idêntico, seria exclusivamente um golpe militar que depusesse um presidente eleito democraticamente pelos cidadãos brasileiros.
Outra associação recorrente é Cuba; ora, a pequena ilha nem sequer aproxima-se do caos, da violência e da miséria haitianos. Sobretudo, em Cuba há um Direito, ainda que revolucionário. No Haiti há apenas o assalto do Estado por criminosos, que exercem o poder por meio de assassinatos, roubos, sequestros e toda sorte de indignidades.
A intervenção estrangeira está condicionada pelo Conselho de Segurança e não pode exceder o objetivo para o qual foi convocada, qual seja a restauração da ordem constitucional no Haiti e sua manutenção. Deverá seguir três etapas: num primeiro momento, a invasão e a consequente tomada de poder, com o imediato desarmamento do exército golpista.
Surgirão inúmeras dificuldades pois, inobstante a ausência de modernos armamentos, a tropa de 7.000 homens é secundada por milícias paramilitares. Elas poderão, assim como os próprios militares, descartar uma inútil oposição à intervenção e misturar-se à população, tornando quase impossível o seu reconhecimento.
Em segundo lugar, a recomposição do Estado de Direito, devolvendo ao Executivo e ao Legislativo eleitos em fins de 1990 os seus plenos poderes, com a preparação de uma guarda nacional aduaneira, policial e militar, sob o comando do regime democrático.
Finalmente, a reconstrução material de um país destruído pelo embargo econômico e pela ditadura. Recursos financeiros e assistência técnica provenientes da comunidade internacional devem ser destinados às obras de infra-estrutura, saneamento e saúde.
Que a opinião pública não se deixe enfeitiçar pelo tempo. A espera de solução pacífica, que já dura há três anos, pode resolver um dilema de consciência, mas é o combustível de uma guerra velada e desigual.
O anti-americanismo primário assumido (aliás, nem sempre) pelo Brasil está também marcado por um problema temporal. Três gerações de políticos e diplomatas, formados sob as claras regras da Guerra Fria, viveram um tempo de pouca coragem e de escolhas emblemáticas.
Assistimos hoje à hesitação dos EUA, dividido por uma árdua disputa interna acerca da crise haitiana. Porém os que lá defendem a não-intervenção são precisamente os republicanos, à época colaboradores do golpe que derrubou Aristide.
Vivemos novos tempos, nos quais a aparente defesa da soberania pode vir a ser uma covarde indiferença, exemplarmente representada pelo melancólico gesto da abstenção.

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