São Paulo, sábado, 6 de agosto de 1994
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A caneta mal-assombrada

JOSUÉ MACHADO

Num texto sobre problemas empresariais publicado há algum tempo, uma revista informou que a Parker deixou de produzir canetas no país e contou uma história:
"O presidente Getúlio Vargas usou uma Parker (...) modelo 51 para assinar sua carta-testamento em 1954. Deu-a de presente ao seu ministro da Justiça, Tancredo Neves. Tancredo guardou essa caneta para assinar sua posse como presidente da República."
Fantástico. Pelo que sabemos, Getúlio assinou a carta e deu um tiro no coração. Ficou morto, estendido na cama. Teria ele dado a caneta a Tancredo antes ou depois dessa operação? Pelo texto, parece que foi antes. Assinou e deu. Teria assinado, chamado Tancredo, dado a caneta e pedido licença para suicidar-se? Ou teria dado a caneta a Tancredo antes, e na hora trágica pedido a ele que lha emprestasse? (Como diria o Jânio.) Pode ser também que a tenha dado depois, em comunicação espiritual, porque essas é que são as boas e desinteressadas.
É bom lembrar que a carta havia sido esboçada por Maciel Filho para que Getúlio se licenciasse do governo, diante das pressões dos adversários; Gregório, o guarda-costas de Getúlio, havia mandado matar o jornalista Carlos Lacerda, e os pistoleiros o haviam ferido e matado o major Vaz. O texto da revista não diz isso, mas nos induz a pensar que Tancredo tinha dons divinatórios, pois, de acordo com a revista, "guardou essa caneta para assinar a posse como presidente...".
A preposição para indica que ele guardou a caneta com o fim específico. Teria guardado a caneta mesmo para assinar a posse? Pelo que se sabe, hospedou-se a contragosto no Hospital de Base, de Brasília, à véspera da posse. Só por isso não a assinou. Daí herdamos o que veio depois. O que não é pouco. Cinquenta anos em dez, em ré acelerada.
Tancredo terá assinado, quando muito, um diploma de candidato eleito, antes de ter antecipado sua ida ao céu naquela boa casa de saúde brasiliense.
Essas coisas ocorreram vários anos depois de Juscelino –cinqenta anos em cinco–, de Jânio, da alegre bonança militar e do resto. Grande resto! Grandes candidatos! Eles se candidatam para promover a redenção do povo. A finalidade é essa, apontada por para, que serve para isso mesmo.
É possível que Getúlio, quando entregou a caneta a Tancredo, depois do suicídio, já soubesse dos cinquenta anos em dez, com o toque de modernidade –a estagflação. Quem sabe até a antevisão do futuro tenha contribuído para levá-lo ao suicídio. Previu as criaturas eleitas em 1990, o impeachment, os anões do Orçamento, o Marco Maciel flutuando sempre, as eleições de 1994 com as promessas de todos candidatos e, o melhor da festa cívica, o horário eleitoral compulsório no rádio e na TV. Não aguentou. Morreu. Mas nós temos a alegria de ligar a TV para ouvi-los dizer que agora a coisa vai.
De volta à revista, sob qualquer ângulo o textículo é estimulante. A descrição que fez dos acontecimentos em torno da caneta é a prova de que Shakespeare tinha razão quando falou por Hamlet:
"Há no céu e na Terra, Horácio, bem mais coisas do que jamais sonhou vossa filosofia."
PS: Que filosofia poderia explicar a arte de viver do senador Marco Maciel? Ele nasceu para ser político e é político para servir o povo. Há 30 anos não consegue se desvencilhar do poder, qualquer poder. Que culpa tem se sua trajetória retilínea coincide com a do poder a todo instante?

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em Línguas Neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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