São Paulo, domingo, 7 de agosto de 1994
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Sistema tributário deve ser cumprido

OSIRIS LOPES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Meu desejo era falar de rosas. Mas lendo a Folha de domingo passado verifiquei que, na parte inferior da página onde estava meu artigo-debutante, o vereador Marcos Cintra desancava a lenha em mim e, como sempre, defendia o seu sonho (ou pesadelo) do imposto único.
Vi, desde então, que teria que falar de espinhos. O vereador Cintra, movido por uma ousadia que raia à virulência, acusa-me de ter sido vítima, ao solicitar minha exoneração do cargo de secretário da Receita Federal, da mesma violência que teria praticado no cargo, em nome da moralidade e da legalidade.
Desejo, inicialmente, assinalar a grande mudança ocorrida com o vereador Marcos Cintra. Num debate realizado neste jornal, no início do ano, entre eu e ele, que é também doutor em Economia pela Universidade de Harvard, economizou o seu ardor, aflorado na coluna dominical, possivelmente influenciado pelo conteúdo paradisíaco de sua proposta, e foi só candura, abrandando a metodologia rigorosa de sua exposição.
Confesso que fiquei surpreso com a nova feição violenta adotada pelo vereador. Talvez isso tenha ocorrido em face da sua postulação de candidato a deputado federal, desejoso de se livrar do paroquialismo da vereança, ganhando um púlpito nacional para a sua pregação.
A minha conduta na Secretaria da Receita Federal foi sempre pautada pelo respeito à lei. Lei para todos, principalmente para os sonegadores. Realmente, obedecido o devido processo legal, em pouco mais de um ano elevei as representações criminais feitas à Procuradoria Geral da República, para que ela iniciasse o processo penal, em relação a pessoas que tinham praticado crimes contra a ordem tributária, de cerca de 800 representações, quando lá cheguei, passando para em torno de 3.000, quando parti.
Pedi também a prisão civil de cerca de 300 depositários infiéis, nos dois primeiros meses de vigência da lei que instituiu tal modalidade de prisão. Não poderia ser complacente com dirigentes de empresas que recolhem o Imposto de Renda incidente sobre os salários de seus empregados e se apropriam indebitamente de tais quantias, não repassando-as à União.
Nunca foi meu objetivo perseguir ninguém. O que me motivava era fazer a lei tributária ser cumprida em relação a pessoas e setores da economia acostumados à impunidade histórica na evasão dos tributos. Lei igual para todos.
Reconheço que tal atitude encontra resistências nas pessoas e setores atingidos pela ação da administração tributária federal. Afinal, gozavam as delícias da evasão e repentinamente passaram a correr riscos, no mínimo, de redução patrimonial, em face do imposto cobrado, podendo ainda, como foi o caso de P.C. Farias, ir para a cadeia.
Assim, tenho a necessária compreensão e tolerância ao ler artigos que esperneiam com relação ao que foi feito. Nem todos seguem a regra de que "cabrito bom não berra". Há os que, não resistindo à pressão sofrida, irrompem com a violência de ressentimentos e frustrações reprimidas.
As críticas que faço ao sistema tributário brasileiro são basicamente a péssima distribuição da carga tributária, suportada decisivamente pelos assalariados, e o fato de inexistir uma boa e eficiente administração tributária, que possa reprimir com eficácia a evasão.
Sempre trabalhei no sentido de provar que pode ser proscrito o expediente adotado pelos governos militares de, mediante manipulação da lei, garantir os acréscimos de arrecadação, criando ou elevando tributos, cujo ônus sempre recaía sobre os contribuintes corretos, dando, por consequência, melhores condições de concorrência ou sobrevivência ao evasor.
O racional e justo é, combatendo-se a evasão, incorporar ao universo de pagantes efetivos de tributos, os evasores. Garantir a arrecadação necessária através do combate à evasão. Dessa forma, poder-se-á aliviar a carga tributária individual, beneficiando o contribuinte correto.
Claro que todo sistema tributário pode ser aperfeiçoado. As minhas críticas sempre objetivaram a sua melhoria, principalmente ao veicular mazelas que antes eram guardadas por silêncio sepulcral.
Mas não tenho a sua inspiração de Nero, que, para modernizar Roma, incendiou-a.
Não é preciso destruir o nosso sistema tributário para torná-lo justo. Importa fazê-lo cumprido, principalmente em relação aos que, tendo alta capacidade contributiva, se omitem de pagar os impostos devidos.
O que mais me impressionou na tese do imposto único foi a questão da travessia. Explico: denunciada uma situação abominada (o atual sistema tributário), deve-se passar para a situação idílica (o imposto único, tão sonhado no século 18).
A questão fundamental é da sua viabilidade. Em outros termos, o maior problema não é o fim desejado, mas a viabilidade de implantá-lo.
O imposto único, para ser introduzido no país, exige uma alteração elefantina da Constituição: acabar com a Federação, derrubando a cláusula pétrea que a protege; retirar dentre os princípios constitucionais o da capacidade contributiva, o da personalização do imposto e o da divisão de competência dos entes políticos. O aprofundamento dessa matéria fica para outra oportunidade.
Mas a sua fragilidade financeira é de tal ordem que, com dados de 1992, verificou-se a total insuficiência desse imposto para manter o nível de recursos arrecadados pela União, Estados, Distrito Federal, municípios e INSS, que alcançava US$ 117 bilhões.
A arrecadação do imposto único, aplicada uma alíquota de 1% em cada operação bancária de depósito e retirada, o que equivale a uma incidência efetiva de 2% sobre as operações bancárias, não ultrapassaria US$ 37 bilhões.
Ocorreria, por insuficiência de recursos, a efetiva destruição do Estado brasileiro, impossibilitando-o de cumprir suas finalidades.
Finalmente, devo assinalar que o vereador Cintra realiza sutil defesa da evasão, ao falar "do pobre contribuinte, quando por impossibilidade material, é impelido a desrespeitar a lei" ou, quando mais adiante, assinala que "o contribuinte não tem uma natural propensão à malandragem".
Se o vereador Cintra abandonar a sutileza da sua apologia da sonegação e utilizar uma linguagem mais direta e clara na sua justificação, tenho certeza de que a tribuna federal estará à sua espera. Há tantos evasores neste país que, cativados, garantirão votos mais do que suficientes para eleger um deputado federal.

ORISIS LOPES FILHO, 54, é professor de Direito Tributário da Universidade de Brasília e ex-secretário da Receita Federal.

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