São Paulo, domingo, 7 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Paz analisa as metáforas do amor

OCTAVIO PAZ

A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal. Ambos são feitos de uma oposição complementar. A linguagem –som que emite sentido, traço material que denota idéias corpóreas– é capaz de dar nome ao mais fugaz e evanescente: a sensação; por sua vez, o erotismo não é mera sexualidade animal –é cerimônia, representação. O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora. A imaginação é o agente que move o ato erótico e o o ético. É a potência que transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora. A imagem poética é abraço de realidades opostas e a rima é cópula de sons; a poesia erotiza a linguagem e o mundo porque ela própria, em seu modo de operação, já é erotismo. E da mesma forma o erotismo é uma metáfora da sexualidade animal. O que diz essa metáfora? Como todas as metáforas, designa algo que está além da realidade que lhe dá origem, algo novo e distinto dos termos que a compõem. Se Góngora diz "púrpura nevada", inventa ou descobre uma realidade que, embora feita de ambos, não é sangue nem neve. O mesmo acontece com o erotismo. Diz, ou melhor, é alguma coisa diferente da mera sexualidade.
Embora as maneiras de relacionar-se sejam muitas, o ato sexual significa sempre a mesma coisa: reprodução. O erotismo é sexo em ação mas, seja por desviá-la ou por negá-la, suspende a finalidade da função sexual. Na sexualidade o prazer serve para a procriação; nos rituais eróticos o prazer é um fim em si mesmo ou tem finalidades diferentes da reprodução. A esterilidade não é só uma nota frequente do erotismo, mas também, em certas cerimônias, uma de suas condições. Algumas vezes os textos gnósticos e tântricos falam do sêmen retido pelo oficiante ou derramado no altar. Na sexualidade a violência e a agressão são componentes necessariamente ligados à copulação e, assim, à reprodução; no erotismo, as tendências agressivas se emancipam, quero dizer, deixam de servir à procriação e se tornam fins autônomos. Em resumo, a metáfora sexual, por meio de suas infinitas variações, significa sempre "reprodução"; a metáfora erótica, indiferente à perpetuação da vida, interrompe a reprodução.
A relação da poesia com a linguagem é semelhante à do erotismo com a sexualidade. Também no poema –cristalização verbal– a linguagem se desvia de seu fim natural: a comunicação. A disposição linear é uma característica básica da linguagem; as palavras se enlaçam umas às outras de forma que a fala pode ser comparada a um veio de água correndo. No poema a linearidade se torce, atropela seus próprios passos, serpenteia: a linha reta deixa de ser o arquétipo em favor do círculo e da espiral. Há um momento em que a linguagem deixa de deslizar e, por assim dizer, levanta-se e move-se sobre o vazio; há outro em que cessa de fluir e transforma-se em um sólido transparente –cubo, esfera, obelisco– plantado no centro da página. Os significados congelam-se ou dispersam-se; de uma forma ou de outra, negam-se. As palavras não dizem as mesmas coisas que na prosa; o poema já não aspira a dizer, e sim a ser. A poesia interrompe a comunicação como o erotismo, a reprodução.
Diante dos poemas herméticos nos perguntamos perplexos: o que querem dizer? Se lemos um poema mais simples, nossa perplexidade desaparece, não nosso assombro: nessa mesma linguagem límpida –água, ar– estão escritos os livros de sociologia e os jornais? Depois, passado o assombro, não o encantamento, descobrimos que o poema nos propõe outra classe de comunicação, regida por leis diferentes das do intercâmbio de notícias e informações. A linguagem do poema é a do dia-a-dia e, ao mesmo tempo, diz coisas distintas das que todos dizemos. Esta é a razão do receio com que as igrejas sempre viram a poesia mística. São João da Cruz não queria dizer nada que fugisse dos ensinamentos da Igreja; apesar disso, sem querer, seus poemas diziam outras coisas. Os exemplos poderiam se multiplicar. A periculosidade da poesia é inerente a seu exercício e é constante em todas as épocas e em todos os poetas. Há sempre uma rachadura entre o dizer social e o poético; a poesia é a "outra voz", como eu disse em outro texto. Por isso é, ao mesmo tempo, natural e perturbadora sua correspondência com os aspectos do erotismo, negros e brancos, de que falei antes. Poesia e erotismo nascem dos sentidos, mas não terminam neles. Ao se soltarem, inventam configurações imaginárias –poemas e cerimônias.

Tradução de WLADIR DUPONT

Texto Anterior: Como o Ocidente inventou a liberdade
Próximo Texto: Faoro discute contradições do liberalismo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.