São Paulo, domingo, 7 de agosto de 1994
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Faoro discute contradições do liberalismo

RAYMUNDO FAORO

O pensamento político brasileiro, na sua origem, é o pensamento político português. A colônia –a conquista, como se dizia nos documentos oficiais– prolonga a metrópole, interiorizada, geograficamente a partir de 1808, culturalmente em cada ato político, desde a integração da primeira à última (Silva Dias, "A Interiorização da Metrópole - 1808-1853"). Entre a dinastia de Avis, conjugada ao Renascimento e à Contra-Reforma, constituiu-se a nacionaldiade portuguesa. Ela assenta sobre um paradoxo, suscitando um problema que não viria a resolver, com deficientes potencialdiades para lhe desenvolver as forças produtivas que estavam na base. Talvez o fato de haver sido, no pórtico da Idade Moderna, não uma unidade de fixação econômica, mas a agência de interesses alheios e europeus, postos fora do controle da nacionalidade, explique a anomalia, que geraria uma revolução irrealizada. Da debilidade do Renascimento lhe adveio a debilidade da estrutura cultural, sem o vigor das nações ascendentes da Europa. Os pressupostos conjugam-se, sem que frutifique o projeto. O Renascimento europeu, além de privilegiar a idéia da nacionalidade, com a nota tônica posta na soberania interna, fixa o contorno da idéia de liberdade. O conceito, desde então, em que pese o tegumento retórico que o envolve, significa independência e autogoverno (Skinner, "The Foundations of Modern Political Thought"). O direito romano, recebido pelos glosadores, consolidou o poder do príncipe, senhor da paz e da guerra, ensinado pelos conselheiros da dinastia de Avis. Nesse período de glória portuguesa, em que se abrem os mares, revelando terras novas e gentes desvairadas, estão os limites de seu desenvolvimento. A empresa marítima, por descoordenação de forças produtivas internas, exigia um rei forte. No contexto, as tendências democratizantes, tão vivas no estabelecimento revolucionário da dinastia, cedem o passo ao absolutismo emergente.
Começa aí o isolamento português, imune às nascentes teorias da soberania popular, já vivas na Europa pela voz de Bártolo de Saxoferrato e de Marsiglio de Padua (Skinner, ibidem). De outro lado, entra em cena a secularização da política, que se emancipa da teologia e do papado. Essa corrente não correspondia, senão que contrariava, o interesse do Reino, preocupado em assenhorear-se, com o Tratado de Tordesilhas, de metade do mundo (Mesnard, "L'Essor de la Philosophie Politique au XVIe. Siècle"). Tal preocupação monárquica explicará, no futuro, a ausência de Maquiavel na cultura portuguesa. Tratava-se de assegurar à religião institucionalizada a preeminência política, a qual, pela via do papado, garantia a empresa marítima, protegendo-a contra as agressões dos países concorrentes. Não era ocioso, dessa sorte, vincular o projeto nacional à incolumidade de um árbitro, mantido em todo seu prestígio medieval. O entendimento destilado em "O Príncipe", de que a religião era mero "instrumento regni", insinuava o predomínio secular, pelo mero uso da religião como cimento ideológico. Por isso, Maquiavel, acoimado, desde que dele se falou, de "herege", "ímpio", "perverso e ignorante", esperaria, para ser traduzido em língua portuguesa, o século 20, depois de universalmente consagrado (Albuquerque, "A Sombra de Maquiavel e a Ética Tradicional Portuguesa"). Pelas mesmas razões, a Contra-Reforma encontra em Portugal campo fértil de aceitação, inquisitorialmente escoltada, agora voltada também contra as influências desnacionalizantes.

No espaço ainda não invadido pela Companhia de Jesus (1534; em Portugal: 1540) e ainda não dominado pelo Concílio de Trento (1545-63), antes da Contra-Reforma e da Reforma Católica, um ou dois movimentos de igual estilo, estruturou-se, vincado pela contradição, o pensamento político português (Dickens, "La Contre-Réforme"). Ele revela os limites orientais e ocidentais: um que o levaria ao pensamento moderno europeu, outro ao futuro "reino cadaveroso". Um documento, posterior (1572), acentua todas as perplexidades do momento. O estilo de pensar, traduzindo o caminho da crítica, era o "saber só de experiências feito", com desprezo à escolástica. Num texto de dramática contradição, os dois rumos se mostram em toda sua profundidade. O "saber só de experiências feito", o saber do velho do Restelo, impugnava o exclusivismo da empresa marítima, no embarque na política de transporte, com as costas voltadas à monarquia agrícola. O "incerto e incógnito perigo" rondaria o país, afastado de suas forças nacionais. De outro lado –esta a contradição que está na base da cultura portuguesa da época– vigora o tradicionalismo político, imune às fracas ondas renascentistas que passaram sobre a paisagem portuguesa. O ator da história seria o rei, não o povo, como já insinuava a inteligência européia, por intermédio da soberania popular nascente e dentro da tese do poder trasnmitido por Deus através da mediação do povo.

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