São Paulo, quarta-feira, 10 de agosto de 1994
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As babás dos cientistas

CLAUDIO DE MOURA CASTRO

No início dos 80, 85% das publicações científicas brasileiras eram assinadas por aproximadamente 1.200 pesquisadores. Isto é, havia menos pesquisadores do que funcionários no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Em outras palavras, a cada pesquisador produtivo correspondia uma babá no CNPq. Nesta época já havia alguma coisa errada. Passados dez anos, nada mudou.
Não faltam talento, dedicação e idealismo a muitos funcionários das agências financiadoras. Mas perpetuam-se formatos pesados, demorados, caros, ineficientes e obsoletos de financiar a pesquisa.
O pesquisador Paes de Carvalho dizia que orçamentos garantidos anestesiam os pesquisadores, enquanto excesso de instabilidade pode traumatizá-los. É preciso encontrar um meio-termo.
As boas soluções garantem um dinheiro relativamente garantido para manter o grupo (pelo menos o salário básico do pesquisador), complementado por outros recursos onde é preciso "ir à luta", premiando assim os mais esforçados e convincentes. Na situação atual, o salário é garantido demais e o resto excessivamente instável e trabalhoso.
Ora, quem vem publicando regularmente ano após ano (e recebendo recursos para tal) tem uma elevada probabilidade de continuar produzindo no futuro e pode ser refinanciado com ritos sumários, economizando-se tempo dos financiadores e dos financiados? Já os pesquisadores novatos deverão ser alvo de todas as atenções, tanto para rastrear e dar oportunidades aos talentos emergentes quanto para evitar que se aposte em perdedores.
Na sua infância, a ciência brasileira era imatura, todos eram novatos. Nesta fase, precisavam de babás. Apesar do ambiente hostil, as agências de fomento fizeram um trabalho esplêndido. Graças a elas, a ciência brasileira amadureceu, ganhou corpo e uma certa estabilidade. Já não somos mais o país onde a maioria dos pesquisadores precisa babás, para vigiar o seu trabalho, para palpitar a cada momento e para azucrinar com excesso de controles e exigências.
Mas infelizmente a evolução desses mecanismos parou no tempo. Boa parte do financiamento da pesquisa continua feito como se mais esforço de governar levasse a mais governo.
Não se trata de acabar com o governo ou sonhar com um governo minimalista, mas de adequar o peso do governo à natureza do problema. Para ilustrar idéias, vejamos alguns exemplos de muito governo e pouco resultado e outros de pouco governo e muitos resultados.
Muitas babás e pouco resultado:
1) A Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) tem até hoje uma equipe competente e coesa, apesar da perda considerável de recursos. Contudo, continua com financiamentos amarrados a projetos trabalhosos e renovados (traumaticamente) em períodos excessivamente curtos.
2) A proporção de recursos para os "apoios institucionais" do CNPq cresceu, bem como os funcionários necessários para administrá-los. Esses programas pesados se justificavam em datas pretéritas e se justificam hoje para uma gama limitada de programas. Mas, no todo, é muito governo e pouco resultado.
3) Ao ver abuso e usos indevidos dos dinheiros, administradores e contadores tentam evitar as estripulias pela criação de controles financeiros e administrativos cada vez mais pesados. Mas, no fundo, esses controles pouco fazem além de atrapalhar e criar trabalho para os pesquisadores e para suas babás nas agências. Por que perder tempo com o recibo do sanduíche que nada tem a ver com a qualidade da pesquisa?
Muito resultado e poucas babás:
1) Como é irresistível a tentação das agências de gastar cada vez mais com elas próprias, a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) estabeleceu uma proporção máxima e modesta do seu orçamento que pode ser usada para a sua administração, o resto vai para os clientes.
2) O CNPq tem um programa –similar do CNRS (Centre National de Recherche Scientifique) na França– de complementar os salários de pesquisadores. Já que a produtividade é estável, melhor julgar uma vez com todo cuidado quem são os pesquisadores estavelmente produtivos e dar a eles uma complementação correta.
3) Quando as bolsas para a pós-graduação aumentaram, a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) encontrou uma solução simples e eficaz: entregar as bolsas aos melhores cursos e deixar que estes selecionem os bolsistas segundo considerem mais apropriado. Para operacionalizá-la, criou um sistema de avaliação dos cursos de pós-graduação, usando os próprios pares da comunidade científica. Para saber quem é competente, basta ver essas avaliações.
4) A Capes criou um financiamento institucional baseado na avaliação do curso e no seu porte. De acordo com a nota e o tamanho do curso, o dinheiro é automaticamente enviado.
5) Para evitar a trabalheira para atender a todas as exigências administrativas, a Anpec (Associação de Pós-Graduação em Economia) passou a tratar a pesquisa como uma publicação cujos direitos autorais ela compra. Assim, transferem-se ao pesquisador os recursos sem prestações de conta. Se a pesquisa corresponde ao prometido, é dinheiro para cá e direitos para lá.
Praticamente todas as soluções para acabar com as babás já foram criadas e estão aí para quem quiser ver. O problema é que as boas soluções não se generalizaram.
A comunidade científica tremeu diante do risco de mudanças nos mecanismos de financiamento e sabotou todas as tentativas de mudá-los. De fato, nos últimos dez anos, as formas de financiar a ciência estagnaram. As babás envelhecem, mas ninguém ousa dizer que a ciência brasileira já passou do estágio em que precisava delas. Sobretudo considerando as perdas em valor real dos fundos disponíveis, já era tempo de implementar outros mecanismos para manter viva nossa ciência.

A Folha realiza hoje, às 19h30, no auditório do jornal, o debate "Propostas de Financiamento para o Ensino Superior e Pesquisa", com entrada livre.

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