São Paulo, quarta-feira, 10 de agosto de 1994
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Frei Tito, 20 anos

FREI BETTO

No próximo dia 10 completam-se 20 anos da trágica morte de Frei Tito de Alencar Lima, em L'Arbresle, no sul da França, induzido ao suicídio em decorrência das torturas sofridas nos cárceres da ditadura militar.
Na dor de Tito gravou-se o que de mais hediondo produziu o militarismo brasileiro e, nele, tornado símbolo das vítimas de torturas elencadas no livro "Brasil, Nunca Mais", reflete-se a indignação de quantos acreditam na política como mediação de utopias libertárias.
Preso em novembro de 1969, acusado de oferecer infra-estrutura a Carlos Marighella, Tito é submetido a palmatória e choques elétricos, no Deops, em companhia de seus confrades.
Em fevereiro do ano seguinte, quando já se encontra em mãos da Justiça Militar, é retirado do presídio Tiradentes e levado para a Operação Bandeirantes, mais tarde conhecida como DOI-Codi, à rua Tutóia.
Durante três dias, batem sua cabeça na parede, queimam sua pele com brasa de cigarros e dão-lhe choques por todo o corpo, em especial na boca, "para receber a hóstia", gritam os algozes.
Fernando Gabeira, preso ao lado, tudo percebe. Querem que Tito denuncie quem o ajudou a conseguir o sítio de Ibiúna para o congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), em 1968, e assine depoimento atestando que dominicanos participaram de assalto a bancos.
No limite de sua resistência, Tito corta, com a gilete que lhe emprestam para fazer a barba, a artéria interna do cotovelo esquerdo. É socorrido a tempo no hospital militar, no Cambuci.
As incessantes torturas não abrem a boca do frade de 28 anos, mas lhe cindem a alma. Cumpre-se a profecia do capitão Albernaz, da Oban: "Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia".
Em dezembro de 1970, incluído na lista de presos políticos trocados pelo embaixador suíço Giovanni Bucher, sequestrado pela VPR de Lamarca, Tito é banido do Brasil pelo governo Médici.
De Santiago do Chile ruma para Paris, sem jamais recuperar sua harmonia interior.
Nas ruas da capital francesa ele "vê" o espectro de seus torturadores. Transferido para L'Arbresle, próximo a Lyon, em seu estreito quarto no convento construído por Le Corbusier, Tito estremece aos gritos do pai espancado no Dops, geme aos berros da mãe dependurada no pau-de-arara, arrepia-se de pavor aos espasmos de seus irmãos eletrocutados, contorce-se em calafrios sob o fantasma do delegado Fleury. Sua mente naufraga em delírios.
No dia 10 de agosto de 1974, um estranho silêncio paira sob o céu azul do verão francês, envolvendo folhas, ventos, flores e pássaros. Nada se move. Entre o céu e a terra, sob a copa de um álamo, balança o corpo de Frei Tito, dependurado numa corda.
Do outro lado da vida ele encontrara a unidade perdida. Deixa registrado em seus papéis que "é melhor morrer do que perder a vida".
De retorno ao Brasil, em março de 1983, os restos mortais de Frei Tito tiveram solene acolhida na catedral da Sé, em cerimônia presidida pelo cardeal d. Paulo Evaristo Arns. Repousam agora em Fortaleza. Não se apagou, todavia, a luz de seu exemplo. A criatividade artística captou o rastro de sangue que se faz caminho.
O curta-metragem "Frei Tito", dirigido por Marlene França, recebeu aplausos em festivais do exterior, conquistou em Cuba o prêmio de melhor curta-metragem, no Festival Latino-Americano de Cinema e, no Brasil, o prêmio Margarida de Prata, da CNBB.
Premiada pelo Serviço Nacional de Teatro, a peça de Licínio Rios Neto, "Não Seria o Arco do Triunfo um Monumento ao Pau de Arara?", em memória de Tito, foi proibida pela Censura Federal, impedindo Ricardo Guilherme de montá-la para percorrer o país.
Oriana Fallaci dedicou a ele o livro "Um Homem", em que narra a paixão dela por Panagoulis, líder da resistência à ditadura grega. O senador italiano Raniero La Valle escreveu, sobre Tito, "Fora do Campo", editado no Brasil pela Civilização Brasileira. Clara Góes encontrou em Tito a força de inspiração para um de seus livros de poesia.
Celebrar hoje a memória de Frei Tito é resgatar o sacrifício de todos que, no Brasil, lutaram pela restauração da ordem democrática. Ela ainda é frágil, porém promissora, considerando que a sociedade civil prossegue se organizando e mobilizando na conquista de cidadania e na consolidação da democracia.
Ditadura, nunca mais.

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