São Paulo, quinta-feira, 11 de agosto de 1994
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Independência pautou 50 anos de carreira

DANIEL PIZA
DA REPORTAGEM LOCAL

A carreira de Iberê Camargo (1914-1994) teve coerência, independência e durabilidade únicas na história da arte brasileira.
Iberê não teve uma primeira grande década e depois "secou", como Tarsila do Amaral (1886- 1973). Não foi irregular, por vezes tímido, como Victor Brecheret (1894-1955). Não terminou com a obra corrompida por falsificadores e disputas judiciais, como Alfredo Volpi (1896-1988). Não se entregou nos últimos anos a vícios, como Hélio Oiticica (1937-1980).
Tecnicamente exímio, no desenho, na gravura ou na pintura, Iberê sempre trabalhou muito e não fazia publicidade de si mesmo. Por 50 anos seguiu essa linha –foi talvez o último artesão, no sentido de alguém que busca a tal "verdade de sua obra".
Mesmo assim, irritava puristas com suas declarações. Protestava contra todo intromissão do governo na cultura. Em 1954, por exemplo, liderou movimento pela livre importação dos materiais de pintura (caríssimos; dizia gastar cerca de US$ 2.000 só no material usado para cada tela).
Em 1993, em entrevista à Folha, perguntou por que a lei dava isenção de IPTU a times de futebol e não a ateliês. Não fazia isso para ter fama de encrenqueiro; jamais foi de se pautar pela moda.
Sua pintura é a prova final. Adotou o abstracionismo quando este já ameaçava sair de moda –em 1961. Voltou à figura antes de essa volta ser licenciada pelos críticos –em 1980. Rejeitou a arte puramente abstrata ("Não sou saco vazio", disse) e a arte conceitual ("Não existe arte sem suporte", resumiu).
Sua pintura teve, a grosso modo, três fases: a inicial, sob influência do expressionismo alemão; a abstrata, ou expressionista abstrata, nos anos 60 e 70; e a final, dos anos 80 em diante, em que retoma o figurativismo.
Alguns elementos, no entanto, são recorrentes. As pinceladas sempre foram carregadas de tinta e aplicadas com velocidade. As figuras de infância (bicicletas, carretéis, bancos) sempre emergiram da tela como o inconsciente latejando na memória. As cores sempre foram opacas, carnais. O tom, enfim, sempre foi trágico.
Embora assumidamente autobiográfica, a pintura de Iberê não fala só de Iberê. Como toda grande arte, fala de todos nós, e fala por meio de uma questão que é, objetivamente, o assunto de Iberê: a identidade pessoal. Daí, por exemplo, os fantasmas e os "duplos" de sua última fase. "Os sósias", costumava lembrar, "são iguais mas não são idênticos."
Mas uma carreira com tal consistência nunca significou grandes dividendos. Ainda que seu nome nos últimos anos tenha sido sempre acompanhado do aposto "considerado o maior pintor vivo do Brasil", jamais teve retrospectiva à altura dessa carreira.
Além disso, as telas de Iberê não vendiam bem. Em 1992, ele fez e doou uma série de quadros para ajudar no tratamento do diretor teatral Manoel Aranha, portador do vírus da Aids. Nenhum foi comprado na ocasião.
Sua última exposição individual de inéditos, na galeria Camargo Vilaça, em 1993, também não foi bem. Das sete pinturas expostas, com preços de US$ 44 mil a US$ 46 mil, apenas uma foi vendida.
Iberê, como tantos, pagou preço alto para ser um espírito independente no Brasil.

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