São Paulo, quinta-feira, 11 de agosto de 1994
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Um encanador é um encanador

OTAVIO FRIAS FILHO

Deu grande controvérsia a alusão, suscitada pelo cineasta Arnaldo Jabor e repetida em outro contexto pela atriz Ruth Escobar, que associa FHC ao filósofo Sartre e Lula a um encanador, ou bombeiro, como se diz no Rio.
Foram rios de indignação contra o preconceito implícito na analogia. Muito bem. Mas como o preconceito sempre toma por verdade geral uma constatação parcialmente verdadeira, ou pelo menos justificável em parte, cabe perguntar se FHC não é de fato "Sartre" e Lula um "encanador".
Não é o candidato-sociólogo apresentado como uma espécie de prodígio capaz de impor sua superioridade racional à esquerda e à direita? Não é ele uma carreira de méritos intelectuais a ser obrigatoriamente coroada pelo prêmio mais eminente?
E não é ao mesmo tempo sartreano o problema de FHC, ou seja, saber se a excelência em matéria intelectual, em "cosa mentale", como a definiu Leonardo da Vinci, pode ser convertida em desempenho? Em outras palavras, será o melhor cérebro necessariamente o melhor governante?
No caso de Lula, a arqueologia do preconceito segue o mesmo traçado. Pois mesmo quem não sabe de alguma forma pressente que o sentido de uma eventual –e cada vez menos provável– vitória de Lula repousa na sua condição de "encanador", de excluído do saber que normalmente se associa ao poder.
A réplica de Lula à "boutade" dos intelectuais tucanos foi precisa e elegante: um encanador é mais indispensável que um Sartre. O encanador tem função em meio às realidades sensíveis, práticas, enquanto que Sartre é um fantasma que se agita inutilmente sobre elas.
Na metáfora Sartre X encanador está o dilema desta eleição: ou bem acreditamos que a sabedoria intelectual é capaz de absorver a massa dos reclamos populares ou, pelo contrário, que só uma sensibilidade grosseiramente popular pode exprimir a solução racional para nossos problemas.
Nem oito nem oitenta: nem tão à direita nem tão à esquerda, numa disputa que tediosamente, aliás, converge para o centro, para o indiferente. De toda forma, o demônio do preconceito (e da ideologia) persegue as ressonâncias inexoráveis do seu destino que é dividir e não unir.
Quem mais esbraveja contra o preconceito é quem mais incorre nele, pois é igualmente preconceituoso qualificar alguém inepto para o governo de mero "encanador", quanto considerar que um mero "encanador" seria inepto para o governo.
No fundo, o preconceito não está na intenção malévola de quem o pratica, mas na receptividade culpada de quem é seu alvo. No momento em que nenhum insulto contra negro, "encanador" ou homossexual exercer efeito vexaminoso sobre o insultado, só então o preconceito estará perfeitamente extinto.
Ao reagir com humor à frase desajeitada, Lula mostrou como o preconceito é pessoalmente ineficaz contra ele. Mas ao contrário da maioria da população, o candidato do PT não tem motivo para sofrer. Na vitória ou na derrota ele está pago e satisfeito, parece de bem com a vida –a única coisa que importa.

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