São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
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Se todos pagarem, todos pagarão menos

OSIRIS LOPES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O episódio ocorrido na Alfândega do aeroporto do Rio de Janeiro, relativo às bagagens da comitiva da Confederação Brasileira de Futebol e dos jogadores tetracampeões do mundo, possibilitou o surgimento de manifestações populares, principalmente nas seções de cartas dos jornais, no sentido da aplicação da lei tributária indistintamente para todos, eliminando-se os privilégios, as proteções e os "jeitinhos" estabelecidos pelos poderosos à margem da lei.
O fato ganhou realce contrastante pois, inegavelmente, o país estava satisfeito e orgulhoso com a vitória da seleção na Copa do Mundo e, mesmo assim, entendeu a população que não havia mérito que justificasse o alívio do imposto de importação com que altas autoridades pretenderam premiar os jogadores, considerados heróis nacionais, pela abalizada opinião do super-jogador Romário.
A reação popular constitui marco inicial da incorporação do fenômeno da tributação ao conceito de cidadania e à luta pela sua crescente afirmação.
Efetivamente, a expansão do domínio da cidadania já havia abrangido vários setores da vida nacional, tais como as liberdades democráticas, o combate à fome das populações carentes, a proteção jurídica dos presos, a obtenção de propriedade rural para os sem-terra, o amparo aos chamados meninos de rua e a preservação dos recursos naturais.
Mas a tributação não ocupara ainda o destaque que o seu papel relevante no financiamento estatal e na vida das pessoas desde muito tempo se impunha. O tributo, como retirada forçada de recursos financeiros do setor privado da economia em favor do Estado, portanto, diminuindo as disponibilidades monetárias dos contribuintes, sempre fora matéria tratada basicamente pelos iniciados (advogados, contadores, economistas e outros profissionais), as empresas e as entidades empresariais mais atuantes e, finalmente, decididas pelos órgãos governamentais.
O povo, embora tenha sempre sentido no bolso o impacto cada vez maior da incidência tributária, afora queixas e lamúrias, jamais praticou uma reação da magnitude da realizada com referência ao tratamento aduaneiro das bagagens dos tetracampeões.
A carga tributária no país é pior distribuída do que a renda e a riqueza. O nível de evasão é alarmante. Cálculos otimistas consideram que ela corresponde a 50% da base tributária, embora tenha diminuído no último ano.
Com um quadro desses tem-se que, quando um contribuinte paga corretamente o tributo devido, está a pagar por si mesmo e por outra pessoa que pratica evasão.
Essa situação é injusta e irracional. Alguns setores dotados de criatividade milagrosa estão sempre dispostos a apresentar proposta de reforma tributária, principalmente de nível constitucional, para eliminar o "status quo" indesejado.
Não se tem dado conta de que a alterações constitucionais estão provocando torrentes de ações no Judiciário, impetradas por contribuintes irresignados. Após a Constituição de 1988, com a criação de novas incidências tributárias, há mais ações no Judiciário contra o fisco federal, por exemplo, do que ações executivas cobrando o imposto devido.
Inverteu-se uma realidade típica da ditadura militar. Usava-se com tal frequência e desenvoltura o decreto-lei, para elevar a arrecadação tributária, que a segurança jurídica do contribuinte chegou ao grau mínimo, em face da variabilidade das regras tributárias.
Mesmo ainda manipulando a lei tributária com menor arrojo, não tem o fisco garantia da eficácia das suas maquinações, pois os contribuintes afetados pelas novas medidas, principalmente os dotados de melhor estrutura econômica e jurídica, vão imediatamente ao Judiciário, buscando fugir à nova incidência impositiva.
As inovações tendentes à elevação da carga tributária chegaram ao patamar da intolerância digestiva do universo de contribuintes.
O caminho a ser trilhado é o de se procurar dar eficácia ao sistema tributário atual, principalmente combatendo-se a evasão, para que se possa, pela incorporação do evasor ao universo dos pagantes, diminuir a carga tributária dos contribuintes corretos.
Para tanto, deve-se investir decisivamente na administração tributária, pois ela é o instrumento idôneo para melhorar a aplicação da lei tributária.
Mas que administração tributária? Uma que possa realmente cumprir os princípios constitucionais orientadores da administração pública: legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade.
A legalidade implica o cumprimento incondicional da lei. Nada de o rigor da lei para os inimigos e a facilitação para os amigos. Imanente na observância do princípio, a potencialização do cumprimento da lei e, por consequência, o combate efetivo à evasão, com a obtenção progressiva de acréscimos de arrecadação.
O primado da lei acarreta que a administração tributária paute suas ações por uma linha apartidária e apolítica, neutra, portanto, em relação às correntes políticas e às organizações partidárias, que eventualmente empolguem o poder.
A moralidade consagra o banimento da corrupção dos seus quadros e a valorização do critério do mérito e da competência para o funcionamento da instituição e provimento dos seus cargos.
A impessoalidade significa a adoção de critérios objetivos para a seleção de contribuintes a fiscalizar e a ausência de discriminações odiosas, de perseguições, de voluntarismo e de subjetividade no tratamento dos contribuintes. Há de se entender a impessoalidade da administração tributária temperada pelo tratamento isonômico dos contribuintes.
A publicidade dos atos da administração tributária terá o seu limite no respeito ao sigilo fiscal. Mas não significa o silêncio, pois, tratando-se da coisa pública, deve prestar contas de suas atividades e trabalhos, para que o público saiba efetivamente o que está ocorrendo no seu âmbito.
Há que se desenvolver um setor voltado para a orientação, atendimento e prestação de informações ao contribuinte, de sorte que ele tenha facilitado o cumprimento de suas obrigações.
O atingimento desse patamar mais elevado e útil de administração tributária decorrerá de um processo de aperfeiçoamento da instituição, onde as restrições qualitativas e quantitativas hoje predominantes sejam eliminadas: aumento do corpo funcional (o seu quantitativo é ridículo em face da responsabilidade e imensidão das tarefas); estruturação adequada à sua finalidade; atualização tecnológica; adoção de programa de reciclagem e treinamento permanentes; e sistema de gestão moderno.
Para que a influência da política, do protecionismo, do compadrio, do favoritismo não prosperem e se tenha uma administração tributária voltada ao interesse público, algumas garantias efetivas devem ser estabelecidas.
A valorização do profissionalismo e a existência da oxigenação da carreira. Dignidade salarial, para evitar o êxodo e possibilitar a efetiva integração do servidor ao seu trabalho.
A principal garantia de independência e eficácia de administração tributária será dar-lhe não apenas a autonomia financeira e administrativa, mas assegurar que os dirigentes maiores sejam nomeados pelo titular do Poder Executivo, mas que esta nomeação dependa da aprovação do Legislativo para se completar.
Nessa linha, a exoneração do dirigente não se fará por ato unilateral do titular do Poder Executivo. O ato exonerativo, devidamente motivado, só se completará com o consentimento do Poder Legislativo.
Esse, o caminho para que a lei tributária se aplique efetivamente a todos.

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