São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
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Merleau rejeita a política de Sartre

MAURICE MERLEAU-PONTY
PARIS, 8 DE JULHO (DE 1953).

Caro Sartre,
O tema da conferência que você menciona três vezes em sua carta ("filosofia e política, hoje) estava fixado havia meses, como mostram os programas impressos do Colégio Filosófico. Pronunciei-a no dia 29 de maio e encontrei-me com você dois dias depois, na reunião dos "Temps Modernes, e lhe falaria mais a respeito dela se você assim o desejasse. Antes de proferi-la, e quando lhe anunciei que o faria, no (café) Procope, não pensei em lhe contar ponto por ponto o que pretendia dizer: mas são coisas que foram surgindo, na conversa entre nós.
Além do mais, naquele momento estava combinado entre nós dois que eu redigisse um artigo de política para a revista, e você não podia achar ruim que eu utilizasse numa conferência alguns trechos daquilo que deveria, depois, ser publicado nos "Temps Modernes. Pois trata-se de trechos. Falei um pouco mais de uma hora, e só me referi à sua posição política nos últimos 15 minutos. E, nas 14 páginas de anotações que eu tinha preparado e que agora tenho diante dos olhos, há duas sobre você e mais duas, de conclusão, expondo minhas idéias sobre o engajamento.
Você receberá, com esta carta, um resumo da conferência (no qual dou aos dois últimos parágrafos mais espaço do que tiveram no conjunto). Eu o desafio a encontrar, neles, o que quer que seja de chocante. Em Lyon, na Sorbonne, no Colégio Filosófico, sempre discuti de público suas teses (e no Colégio Filosófico, dois ou três anos atrás, as do "Segundo Sexo" -1)... Sem dúvida, desta vez, a distância entre mim e você era bem mais visível. Mas o tom não havia mudado. Não fui apenas cortês, isto seria óbvio, mas vários ouvintes se mostraram sensíveis à amizade por seu pensamento que transparecia, me disseram eles, na minha maneira de debatê-lo. Em suma, tomei o máximo cuidado em nada dizer a respeito de suas idéias que se inspirasse em nossas conversas particulares e não pudesse ser explicado mediante textos seus dados ao prelo.
Para fazer uma conferência sobre você, assunto é que não me faltava: não disse um décimo do que poderia afirmar a propósito de seus recentes estudos políticos, e por exemplo não entrei, em absoluto, na discussão das noções de classe, partido etc. Limitei-me a plantar uma baliza. Se os reacionários se regozijam ante uma divergência desta ordem, há duas atitudes a tomar. Uma é valer-se disso para transformar a divergência em hostilidade: é o que você faz, e assim os constitui em juízes de nossas discussões. A outra consistiria em lhes mostrar que o que me separa de você não nos coloca em dois campos opostos. É isso o que eu lhe propus, mas que você recusa.
Não concordando com você, o que podia eu fazer? Se tivéssemos fixado em conjunto uma atitude política da revista, teria sido pouco amistoso, –ou, mesmo, uma traição–, discuti-la de público. Mas você nunca deliberou comigo a menor de suas decisões políticas. Antes de mais nada, você me apresentou como coisa decidida o seu projeto de deixar a França em caso de ocupação (soviética) (não esqueço que você se propunha também me ajudar a sair, mas nunca se dispôs a colocar em questão a própria coisa).
Algum tempo mais tarde, acabei sabendo, por acaso, no correr de uma conversa, que você finalmente havia decidido ficar na França em qualquer caso. É verdade que essas decisões tinham um lado inteiramente pessoal; mas não havia diferença entre elas e as que diziam respeito à orientação dos "Temps Modernes. Fiquei sabendo da criação do RDR (2) pela imprensa e, lendo a revista, de sua posição atual relativamente ao PC. (Isto até me valeu a situação ridícula de dizer e escrever que você só pensava em firmar uma unidade de ação, em torno de objetivos limitados, com o PC, e de defendê-lo com veemência com base nisso –para ficar sabendo bem depois, de você mesmo, no curso de uma conversa que não teríamos não fosse por minha iniciativa, que o trabalho em conjunto com os comunistas o havia levado além deste ponto de partida e que, por exemplo, você já não considerava mais válidas suas obras publicadas).
Que obrigação eu poderia ter em relação a posições que você fazia tanta questão de que fossem suas? Se considera que faltei com a amizade ao discuti-las, eu acho, de minha parte, bem pouco amistoso o silêncio no qual você tomou essas decisões. Talento e importância literária postos de lado, que por sinal aqui não estão em causa, nós devíamos um ao outro os mesmos cuidados, porque o que você publicava em matéria política me comprometia da mesma forma que eu a você (ninguém, fora da revista, jamais imaginou que eu estivesse tão pouco a par de seu itinerário). No dia em que foi preciso falar do famoso assunto dos Campos (de concentração soviéticos), eu levei um texto para você, pedindo que o assinasse comigo. Você nunca agiu desta forma comigo.
Mas, enfim, esse procedimento era possível. Ele implicava, pelo menos, que você me deixasse todo o direito de discuti-lo de público. Até porque, oralmente e por escrito, você citava "Humanismo e Terror" no sentido que lhe convinha, que pronunciava meu nome, com alguma malícia, para trazer o caso de Lefort ao meu (3) e, de passagem, você se referia, não sem sarcasmo ( "a música é conhecida, dizia você), aos infelizes que vêem o social entre o em-si e o para-si, e os melhores leitores me reconheceram nessas linhas. Para desistir de falar de suas teses, eu precisaria desistir de ter opinião.
Precisamente, diz você, eu não devo ter opinião. Por uma "brusca mutação, que você data de 1950, eu me teria retirado da política para fazer filosofia, decisão tão pouco contestável quanto a de ser alpinista, mas que, tanto quanto esta, não pode ter sentido político nem ser apresentada como exemplar. Seria contraditório, portanto, debater uma posição política em nome de uma "não-posição, em "apostar nos dois lados, eu só poderia escrever um artigo de política com o intuito de "condenar o mais rápido possível aqueles que poderiam vir a me condenar, porque não me sinto bem comigo mesmo, questões pessoais que não despertam o interesse dos leitores...
O que você chama de minha "brusca mutação é, mais que tudo, um brusco despertar de sua atenção, e minha decisão "subjetiva uma pequena fissura no mundo "objetivo que você está construindo, para si mesmo, desde algum tempo. Nunca oscilei quanto à vontade de fazer filosofia, e lhe disse isso um dia, por volta de 1948, quando você me perguntou por que eu não largava o ensino. Fiz os "Temps Modernes durante vários anos, assim como, durante a guerra, o boletim do movimento Sartre por vários meses, rumando sempre dos fatos para a teoria deles...
Quando eu escrevia editoriais sobre a Indochina ou sobre a greve geral, nunca deixava de exprimir um certo mal-estar, dado que tais assuntos tornavam inevitável uma certa simplificação; geralmente eram textos bem curtos, e eu os redigia porque combinavam com o resto. E não coloquei meu nome nos "Temps Modernes porque não quis me tornar oficialmente um escritor de atualidades, assim como, no fim da guerra, não segui seu conselho de entrar no CNE (Comitê Nacional de Escritores) e de escrever nas "Lettres Françaises, porque não fazia questão de me tornar, oficialmente, um escritor da Resistência.
Não desisti em absoluto, no ano de 1950, de escrever sobre a política; ao contrário, sempre pensei em acrescentar, à "Prosa do Mundo", uma segunda parte tratando do catolicismo, e uma terceira, da revolução. Em setembro de 1951, dei uma conferência em Genebra, boa parte da qual era de teor político, e dada a atmosfera do local havia um certo mérito em fazer isso.
Decidi, desde a guerra da Coréia, –e isso é outra coisa– , não escrever mais sobre os acontecimentos à medida que eles se apresentam. Isto, por razões que dizem respeito à natureza mesma desta época, e também por outras razões que são permanentes. Deixemos estas últimas de lado. Elas não são decisivas (4).
O engajamento em cada acontecimento isoladamente torna-se, em período de tensão, um sistema de "má fé"... Há acontecimentos que permitem, ou melhor, exigem ser julgados imediatamente e em si mesmos: por exemplo, a condenação e execução dos Rosenberg... mas, o mais das vezes, o acontecimento só pode ser apreciado no quadro global de uma política que lhe muda o sentido, e seria artificioso e astucioso requerer o julgamento sobre cada ponto separado de uma política, em vez de considerá-la na sua ordem e em sua relação com a do adversário: isso permitiria fazer engolir no varejo o que não seria aceito no atacado, ou, ao contrário, em tornar odioso, pela soma de pequenos fatos verdadeiros, aquilo que, visto em conjunto, está na lógica da luta.
Admitimos, eu e você, que era essa a astúcia inaceitável do anticomunismo, e também a astúcia da política comunista. Se não assinamos o apelo de Estocolmo (5), foi porque ele procurava conseguir, com uma condenação da bomba atômica à qual nenhum homem de bem, não é verdade, pode se furtar, uma solução favorável à União Soviética em todas as situações de força.
E foi também isso o que me impediu de tomar posição na Guerra da Coréia ou na invasão do Laos. A considerar-se a situação na Coréia do Sul, fica fácil justificar a intervenção política da Coréia do Norte. A considerarmos a invasão do Laos em si mesma, sentimos tanta simpatia pelos que a fazem, quanto antipatia pelos que a ela se opõem. Mas a questão não se esgota nisso. Numa situação mundial tensionada, e mesmo sem imaginar por um instante sequer que a União Soviética puxe todas as cordinhas, é artificial, –e artificioso–, fazer como se os problemas se colocassem um a um e dissolver numa série de questões locais aquilo que, historicamente, constitui um conjunto. Se queremos a coexistência, não podemos exigir que o mundo capitalista atribua a "movimentos sociais" aquilo que, no local, é igualmente uma ocupação militar; e, se o exigirmos, é porque não queremos a coexistência, mas a vitória da União Soviética.
Se, porque a invasão da Coréia do Sul e a do Laos constituem, também, movimentos sociais, você diz que elas são apenas isso, que a astúcia está nas coisas, não na política comunista, então, não é mais a favor da paz que você está, é a favor da vitória mundial do comunismo, de preferência sem
Continua à pág. 6-8

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