São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
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Merleau rejeita a política de Sartre

Não aceito essa bondade, que se reserva a animais e a doentes,e inspira você a deixar-me fazer filosofia sob a condição de ser, apenas, um passatempo

Continuação da pág. 6-7
guerra, e para manter a paz tudo em que você aposta é na indecisão do mundo capitalista...
É por isso que, embora eu fosse contrário à internacionalização da Guerra da Indochina, não tinha vontade de dizê-lo por escrito no momento da invasão do Laos, não me aborrecia que essa ameaça pesasse sobre a política comunista. A coexistência e a paz implicam exigências dessa ordem. É forçoso acreditar que eu não estava tão errado, e que não assinando o apelo de Estocolmo não passávamos ao partido dos defensores da bomba atômica, já que depois disso os comunistas propuseram a nossa assinatura textos bem menos astuciosos, que o Vietminh (6) desistiu de sua ofensiva, que os norte-coreanos aceitaram o armistício e que, finalmente, viu-se delinear-se uma verdadeira política de distensão.
Engajando-se a cada acontecimento, como se isto fosse um teste de moralidade, assumindo como sua, sem o perceber direito ou sem dizê-lo a seus leitores, uma política, você nega a si mesmo, e espontaneamente ainda por cima, um direito de retificação ao qual nenhuma ação séria pode renunciar, e mais que tudo a dos governos comunistas, bem mais capazes ainda do que os outros de voltar atrás em suas decisões, e para terminar você fica sozinho em posições que os próprios comunistas acabaram por abandonar, –o que prova que elas não constituíam a única alternativa a seu dispor, e que recusando-se a afiançar a ação militar deles a esquerda não-comunista fazia seu (autêntico) papel, que é o de favorecer uma política de distensão.
Mais uma vez: se você afirma que não devemos nos ocupar com o aspecto que os acontecimentos assumem aos olhos do anticomunista, e que isso seria fazer o jogo dos reacionários, você então suprime em pensamento o mundo capitalista e não trabalha pela coexistência. É por isso que, várias vezes, sugeri que fizéssemos na revista, em vez de tomadas de posição apressadas, estudos de conjunto, em suma, que visássemos o leitor no cérebro mais que no coração, o que, ademais, corresponde melhor a nossa maneira (de ser) e à da revista.
Eu vislumbrava, nisso, uma ação de escritor, que consiste em fazer a ida e vinda entre o acontecimento e a linha geral, e não em afrontar (no imaginário) cada acontecimento como se ele fosse decisivo, único e irreparável.
Este método está mais perto da política do que o seu método do engajamento continuado (no sentido cartesiano). Ora, nisso mesmo, trata-se de um método mais filosófico, porque a distância que proporciona entre o acontecimento e o juízo emitido sobre ele desarma a armadilha do acontecimento e deixa ver-se, claramente, o seu sentido. Eu não tinha, portanto, necessidade alguma de separar a filosofia do mundo a fim de continuar sendo filósofo –e por isso mesmo jamais a separei.
Para ter compreendido a aula inaugural de que me falou, você precisará ter assistido a ela com a mente muito predisposta. Tive a cautela de falar em Sócrates, para mostrar que o filósofo, longe de ser um fazedor de livros, é alguém que está no mundo. Ataquei aqueles que situam a filosofia fora do tempo, e não usei isso como um álibi, tanto que você poderá ler, entre outras coisas, no texto que ora lhe envio: "o absoluto filosófico não reside em lugar algum, portanto nunca está alhures, tem de ser defendido em cada acontecimento... (7).
Tendo que falar da filosofia, no começo de um curso de filosofia, era legítimo –penso eu– consultar indutivamente alguns casos empíricos de "filósofos. Encontrei o traço comum a eles no equívoco, e não sei como você poderia contestar-me esta idéia, a considerar a história dos filósofos e de suas pantalonadas. Mas procurei afirmar que o equívoco é a má filosofia, e que a boa filosofia é uma ambiguidade sadia, porque constata o acordo de princípio e a discordância de fato do si (soi), dos outros e da verdade e que ela é a paciência que faz tudo isso andar junto, de um jeito ou de outro.
Disse que, assim entendida, talvez ela fosse alheia ao político profissional (8), mas não aos homens (ironia das coisas: eu pensava, enquanto escrevia estas palavras, no discurso que você proferiu no Vélodrome d'Hiver, e que Suzy foi ouvir quando eu estava com minha mãe em Menton, contando-me, depois, que ele afetava tanto o público na medida exata em que se sentia, nele, uma liberdade perigosa, inusitada em política).
Esta filosofia, não é preciso mostrar que ela é possível, já que ela é o homem mesmo, enquanto ser paradoxal, encarnado e social. Se ela não o fosse, nada haveria a dizer nem a fazer, nada haveria de válido, tudo seria indiferente.
Você me pergunta se esta é uma escolha fundamental: pois é bem mais que uma escolha; é justamente o que torna possíveis todas as escolhas, é o próprio fato do viver humano, ao qual somos, como você diz, "condenados. Não há nisso nem essência do filósofo, nem mito, nem fantasma justificador, não acredito que estas idéias sejam propriedade minha nem que sejam tão estranhas a você. Que isso, em mim, se converta em presença sonhadora, é a consequência em algumas pessoas que, diante da dificuldade de fazerem tudo andar em conjunto, tendem a se fechar na própria concha.
Em outros, como você, a dificuldade produz mais é uma reação de afirmação, e eles se lançam para a frente, passando por cima de tudo. Mas não tenho dúvidas de que o mesmo problema os atormenta, e para negar isso seria preciso esquecer tudo o que você escreveu, isto é, tudo o que você é até nova ordem, ou, em todo caso, tudo o que faz que você seja ouvido.
Não aceito, por isso, o benefício dessa pura bondade, que usualmente se reserva aos animais e aos doentes, e que inspira você a deixar-me fazer filosofia sob a condição de que seja, apenas, um passatempo. Mesmo que ela não opte entre o comunismo e o anticomunismo, a filosofia é uma atitude no mundo, não uma abstenção; não está reservada, em absoluto, ao filósofo de profissão, e ele a manifesta fora dos livros que escreve.
Passei uma tarde inteira redigindo um manifesto para Auriol (9) a respeito da detenção de Duclos (10) e dos processos contra os comunistas. Propuseram-me assinar um, ingênuo e matreiro, que só invocava a forma. Preferi escrever um que mostrava, na campanha anticomunista do governo, um expediente para escamotear as discussões sobre o exército europeu, a política atlântica (11), etc. Sempre afirmei que o Comitê de Defesa das Liberdades devia estar aberto, em todos os níveis, aos comunistas. Também disse que o Comitê não tinha que negociar, com organização alguma, o envio de representantes oficiais. Se os comunistas pensam que isto significa barrar-lhes o acesso ao Comitê, é porque o que eles querem é comprometê-lo, mais do que colaborar com ele, e continuam na política da unidade-armadilha.
Ao contrário do que você afirma, eu assinei em favor dos Rosenberg a petição redigida por um advogado do Conselho de Estado (12), cujo memorando, por sinal, era excelente –ao mesmo tempo que me recusava a participar do comício, no Vélodrome d'Hiver, organizado pelos comunistas para a noite mesma em que teve lugar a execução, e que parecia feito de propósito para resolver Eisenhower contra o indulto, se para tanto não bastasse a sua ferocidade. Assinei, há pouco tempo, (um manifesto) pelos intelectuais turcos, que o governo da Turquia mantém na prisão, e quer submeter a um julgamento sumário, –e em favor de um francês do Marrocos, que o governo está demitindo porque foi expulso de lá pelo general Guillaume (13).
Numa conferência para estudantes, do Comitê de Defesa das Liberdades, disse a eles, em substância, que por sinal me agradeceram com um documento assinado por seus líderes: defendam os comunistas, não sejam comunistas. Um grande passo se terá dado no dia em que, no serviço público, se verá que há um núcleo de gente absolutamente decidida a defender as liberdades, mesmo em benefício dos comunistas, e apesar de não serem comunistas. Esta linha não é fácil de sustentar, mas pelo menos é uma linha. Ela não autoriza você a dizer que eu "segrego" o PC ou que "elido os problemas políticos a pretexto de que sejam insolúveis": eu trato deles num plano em que não haja a necessidade de ser comunista ou anti, na esperança de que ambas essas posições venham a ser superadas pela evolução da política internacional.
A expressão de esquerda não-comunista, que você gosta tanto de empregar, não pode ter outro sentido afora este. Mas você, cada vez que a utiliza, faz adelgaçar-se o seu sentido, como uma pele de onagro. Se, para merecer a etiqueta e poder dialogar com você, não basta ter intervido pelos Rosenberg e contra as detenções do ano passado, mas é preciso também, e especificamente, ter defendido Henri Martin e na hora da invasão do Laos, não vejo quase ninguém, nos "Temps Modernes", que possa dialogar com você, a não ser você mesmo.
São estas as idéias que tenho e através das quais eu gostaria aqui, não, por favor, de justificar, mas de explicitar minha conduta. Não me gabo de não ter psique (ou de não ter preocupações ou emoções –a sua amizade bem poderia saber disso, dado o que se passou este inverno). Mas, como você afirma, sobriamente, isto não interessa aos outros. O que importa é o que se pode encontrar de verdadeiro, sólido, válido para todos, ao se examinar com severidade uma "disposição interior" (état d'âme) total. Ora, afirmo que tudo o que acabo de lhe escrever se fundamenta, e que, para reduzi-lo a devaneios sombrios e escapatórias, é preciso que você esteja muito encerrado em si mesmo.
O seu procedimento, que consiste, em última análise, em interpretar os outros psicologicamente, supõe que você confunda o curso de seus pensamentos com o das próprias coisas. Você acredita então estar plenamente no mundo, pensa que só você escapa à psicanálise existencial, e que a ira na qual eu o vi seja inteiramente santa? Você apresenta como um mérito o silêncio que manteve em relação a mim. Não sou da mesma opinião. Porque ele, afinal, foi cortado por algumas palavras que apontavam, mais que tudo, uma irritação: como no dia em que você me disse, em tom glacial, que minha aula inaugural era "divertida", –ou em tom irritado, a propósito do Colégio, "espero que você vá subverter um pouco tudo isso",- num tom que vibrava de violência, que os estudos sobre o em-si e o para-si constituíam um "pensamento vago", –que, se você fosse hoje um catedrático e ensinasse "O Ser e o Nada" (14) ou a "Percepção", teria a impressão de ser um traidor.
Isso bastava para fazer-me tremer, não era suficiente para esclarecer. Você não me discute, me condena. Exatamente o contrário do que sempre fiz em relação a você. Não vou mudar, como você diz, "por tão pouco". Mas ainda assim você precisa sentir que sua conduta, vista de fora, é altamente "psicológica", que justamente a sua presunção de agir segundo princípios objetivos é a forma mais arrogante da "lei do coração", e que, enfim, a sua subjetividade é responsável, em boa medida, pela lamentável imagem que você tem de mim desde o ano de 1950.
Desde a Guerra da Coréia, a causa da esquerda esteve cada vez mais bloqueada no comunismo, a do não-comunismo tendia a se confundir com a reação, porque a política "dura" de Stálin e a política belicosa dos Estados Unidos puxavam para si tudo o que restava. Desde o início, eu e você respondemos a esta situação de maneiras diferentes. Você considerou que se tratava de uma situação na qual era preciso decidir-se, e que se devia, se não escolher um dos partidos, pelo menos preferir uma das políticas como "menos perigosa". Para mim, no terreno militar, ambas se tornavam solidárias, e entendi que era preciso recusar-se a optar nesse plano, para lutar contra toda explicação belicosa da situação (fiquei encantado com os primeiros artigos de Dzélépy, que tomei a iniciativa de publicar), explorando, ao contrário, toda chance de distensão.
Esta atitude lisonjeava meu gosto pela teoria? Digamos que sim. Não sou um anjo. Mas a sua atitude não era menos pessoal, nem mais exemplar. Pois não são as relações objetivas do universo político que levaram você a tomar uma decisão, e sim o seu estar-aí: você quis estar presente dia a dia aos acontecimentos, perante e contra todos, porque "cada um é responsável de tudo diante de todos"; isso não quer dizer que você tenha estado presente ao acontecimento global destes últimos anos (para mim, é até evidente que passou ao largo dele), e foi o coração, a sua maneira mais pessoal de sentir suas relações com o mundo e com o tempo, que agiu aqui.
Meu silêncio era equívoco? Depois de fazer uma relação numerada dos inimigos públicos, e de aceitar engajar-se em cada episódio, você parecia mais limpo do que eu. Mas, afinal de contas, não era menos torto, dado que havia (como lhe disse logo acima) alguma coisa falaciosa no seu engajamento a cada episódio, alguma coisa confusa nessa mescla de um pacifismo incondicional (pelo qual você começou) e de um pacifismo condicional (o dos comunistas), e na sua gradativa passagem da unidade de ação, com objetivos limitados, à simpatia global. Eu não quis que o acontecimento me forçasse a mão, e você não quis tomar uma certa distância (dos acontecimentos).
Não vejo de onde você tira o direito de me condenar: é condenar-me por eu não ser você. E, já que você mostra tão poucos cuidados, precisa saber que também a sua atitude pode "incomodar";
Continua à pág. 6-9

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