São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
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As palavras e as coisas

JOSÉ LUÍS FIORI
ESPECIAL PARA A FOLHA

1. Newsweek é uma revista que dispensa apresentações. Ninguém tem dúvidas sobre sua importância ou sobre seu rigoroso alinhamento liberal, nem desconhece sua familiaridade com as "mudanças contemporâneas".
E seus leitores sabem que não é partidária de análises políticas conspiratórias. Por isso chama tanto a atenção a sua matéria publicada, neste mês de agosto, sobre "O Novo Colonialismo", onde apesar de certos exageros, demonstra uma sensibilidade para os aspectos não-econômicos das "mudanças no padrão estrutural da economia e da sociedade contemporâneas" maior do que a de FHC em seu artigo Reforma e Imaginação publicado recentemente no caderno Mais! (10/7). E por isto é capaz de perceber e afirmar coisas que FHC acha que são produto do "artificialismo" ou obra do estereótipo conspiratório".
Como no caso do tal "Consenso de Washington", um mero label acadêmico inventado por um economista liberal de segunda linha, com objetivo de resumir apenas o programa de ajuste econômico defendido de forma absolutamente explícita e transparente (mediante o uso de suas condicionalidades), pelo BIRD e pelo FMI, como diz com todas as letras e sem maiores ressalvas o referido semanário norte-americano.
Mas tudo se passa entre nós como se uma parte da intelectualidade vivesse até hoje traumatizada (sem razão, em muitos casos) com as críticas às suas teorias do imperialismo e da dependência, ficando impedida, como FHC, de ver e discutir o que a revista Newsweek é capaz de denunciar impunemente: que "na América Latina, uma região devastada pela dívida, pela corrupção e pela ditadura, todo país, do México à Argentina, teve de orientar seu curso econômico com a assistência dos países do Primeiro Mundo –e torção de braço", ou pior ainda, que "para todos estes países, o centro do novo colonialismo é o escritório do diretor do FMI, Michel Camdessus.
2. Denunciar "visões conspiratórias" contudo, não seria mais do que um novo cacoete sem importância, se não ocultasse uma dimensão central para a correta compreensão da nova ordem internacional emergente: o papel do "poder político" nas transformações contemporâneas da economia mundial.
Um erro analítico que, nesse caso, cumpre a função ideológica de reduzir o processo da globalização a um fenômeno material, tecnológico/produtivo, que induziria a respostas nacionais tão necessárias quanto lineares e universais. Com isto, se confunde intencionalmente a irreversibilidade da globalização econômica com a inevitabilidade de determinadas soluções, como se elas fossem independentes das vontades internas dos países e de suas coalizões governantes.
Essa linearidade ou inevitabilidade é aliás, a marca essencial que define o conceito "Consenso de Washington", e é esta concepção que tem conduzido à homogeneização das políticas econômicas dos governos de que nos fala a Newsweek, mesmo quando eles não tenham sido gerados conspiratoriamente em nenhum gabinete da capital norte americana.
Samuel Huntigton, um conservador notório, subscreve nossa tese ao reconhecer em artigo recente o papel decisivo e explícito do poder das grandes potências na conformação de nova ordem mundial globalizada. Para ele, no mundo pós-Guerra Fria "os temas da política global e de segurança são de fato decididos por um diretório formado pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha e França, enquanto as questões referentes à economia mundial são decididas por um diretório reunindo Estados Unidos, Alemanha e Japão, todos eles mantendo relações excepcionalmente próximas entre si, com a exclusão da maior parte dos países não-ocidentais." (Foreign Affairs, verão/1993).
Robert Kehoane, um liberal convicto, aponta na mesma direção quando afirma que "a internacionalização não é um processo econômico apolítico, no qual a adaptação a incentivos tecnologicamente orientados é responsável por todas as modificações que acontecem. Pelo contrário, durante os anos 80 intensa pressão política foi exercida pelos países avançados e industrializados sobre os países em desenvolvimento, para abrirem suas economias". Concluindo de forma taxativa que "em uma série de dimensões, as regras econômicas domésticas dos países em desenvolvimento –e portanto suas coalizões políticas dominantes– foram questionados por Estados poderosos. como sempre na economia mundial, o poder é que importa'. (fevereiro de 1994).
O difícil de aceitar portanto é que os conservadores como os liberais norte-americanos consigam compreender melhor do que FHC a importância e a forma não-conspiratória em que atuam as grandes potências na definição dos rumos da globalização econômica.
O que de importante deve reter-se deste debate sobre a nova ordem mundial é que, ao contrário do que afirma FHC, a globalização da economia não existe apenas como consequência de uma nova forma (até tecnológica) de produzir. A globalização, apesar de ser um neologismo muito pouco preciso, aponta para um processo de transformações cujas origens e consequências são muito mais complexas, por envolver inúmeras dimensões não-econômicas num intrincado processo de decisões privadas e públicas tomadas na forma de sucessivos e inacabados desafios e ajustes.
Neste sentido, a globalização é sem dúvida uma realidade política, cultural e econômica que vai nascendo às costas dos produtores e dos governos, mas é também o resultado de decisões políticas e econômicas tomadas de forma cada vez mais concentrada por alguns oligopólios e bancos globais e alguns poucos governos nacionais. Em síntese, não se trata de um processo que derive apenas do progresso técnico ou da evolução competitiva dos mercados, como é visível em alguns de seus momentos e inflexões mais importantes.
Assim, por exemplo, com o que ocorreu nos anos 60, quando a contestação da hegemonia norte-americana por parte de alguns governos europeus foi a grande responsável pelo acordo que deu origem, em 1967, aos Special Drawing Rights, novo instrumento monetário internacional que acabou suplantando o dólar e o ouro e culminou, como é sabido, como fim do padrão dólar e do sistema de Bretton Woods, em 1971/73.
Ou também, com o que passou nos anos 70, quando a resposta nacional japonesa ao desafio energético, em primeiro lugar, e logo depois, à sobrevalorização de sua moeda, foram os grandes propulsores das transformações tecnológicas e produtivas na origem do que já se chama de terceira revolução industrial ou tecnológica. Ou ainda, finalmente, com o que ocorreu nos anos 80, quando uma decisão do Encontro dos Sete de 1984 (London 2) inicia o esforço comum de coordenação e homogeneização das políticas econômicas nacionais, mal-sucedido no caso das grandes potências econômicas (como ficou visível a partir do Encontro de 1989 em Paris), mas que vem alcançando indiscutível sucesso no caso das economias em desenvolvimento, sobretudo do Leste europeu e da América Latina.
É neste que a candidatura de FHC aparece como peça essencial de uma estratégia global que transcende em muito as nossas fronteiras, como fica visível na entrevista de John Williamson à Folha (07/ago). O seu programa de estabilização e reformas é perfeitamente consistente com os desígnios do G-7 e da chamada comunidade financeira internacional. Mas isto não envolve conspirações, envolve uma convergência a partir da aceitação realista por parte de FHC, de uma correlação de forças que ele considera imutável. O que de forma alguma quer dizer que ele seja um pau mandado de Camdessus, como poderia sugerir uma leitura maliciosa da Newsweek.
Muito grave do que isso, entretanto, para quem considera que sua candidatura se distingue das demais pela sua original visão das mudanças mundiais, é o seu desconhecimento das consequências econômicas e sociais da globalização já assumidas hoje como um desafio ainda sem resposta, por parte dos países industrializados. Hoje só não reconhece que não quer que, depois do compreensível otimismo provocado pelo annus mirabilis de 1989, já a partir de 1992, junto com a nova recessão mundial, os conflitos comerciais e a visível impossibilidade de coordenação macroeconômica entre as três grandes potências, vem se consolidando uma nova leitura do que ocorreu nos anos 80. Uma leitura que vem chamando a atenção para algumas consequências mais perversas e incontroláveis do atual movimento de internacionalização.
Alinham-se nesta direção as constatações de que: a) a desregulação bancária e o fluxo errático dos capitais privados criou uma situação de instabilidade sistêmica que desafia os principais Bancos Centrais do mundo e inviabiliza qualquer tipo de política monetária autônoma, na periferia capitalista. b) as transformações induzidas pela competitividade em uma economia mundial aberta têm deixado como sequela um desemprego que gira em torno de 10% em média nos países da OCDE e nos países periféricos já "ajustados". Desemprego que aumentará segundo todos os prognósticos, independentemente do ritmo de crescimento que volte a ter a economia mundial até o final do milênio;
c) e por fim, o conjunto destes processos provocou nos anos 80 uma concentração sem precedentes do poder, do conhecimento e da riqueza em mão de um número limitadíssimo de empresas e bancos globais, os grandes responsáveis hoje pelas decisões de alocação e deslocação de recursos produtivos e financeiros;
Numa direção complementar, tem-se sublinhado a importância desta concentração de poder e riqueza na limitação dos graus de liberdade e de eficácia das políticas públicas nacionais. Assim, percebe-se cada vez mais que:
a) numa economia globalizada e desregulada fica extremamente difícil implementar políticas industriais sem contar com o controle do risco sistêmico, representado pela instabilidade crônica do câmbio e dos juros;
b) numa economia que se propõe como objetivo central a competitividade em sistema economicamente aberto fica difícil o fortalecimento fiscal dos Estados emparedados ela total mobilidade e desregulação dos capitais. Portanto, estreitam-se as margens de qualquer tipo de política social;
c) numa economia objetivamente fragmentada e subjetivamente movida pelo individualismo fica praticamente impossível implementar, com sucesso, políticas de longo prazo, sem contar com a participação e solidariedade das populações, fenômeno cada vez mais raro nas comunidades globalizadas.
Diante de tudo isto é preciso ser claro, ainda que seja doloroso reconhecê-lo: os governos dos países centrais (e muito menos os dos periféricos) não conseguiram fazer até aqui rigorosamente nada para enfrentar os novos desafios sociais, como ficou visível na impotência decisória das recentes reuniões de Detroit (emprego), Corfu (CEE) e Nápoles (G-7). Nesse sentido é uma completa ingenuidade considerar superada a era neoliberal E por outro lado a social-democracia mundial tampouco foi capaz de propor nada de diferente dos liberais quando foram governo (como na Espanha, Itália ou França), ou quando estiveram por longo tempo na oposição (como na Inglaterra e Alemanha). Na verdade, o que vem se afirmando como resposta ao projeto de globalização liberal e como efeito do impasse social-democrata é, por um lado, a barbárie (apenas mais ostensiva nas falling nations africanas) e por outro, variadas formas de um nacionalismo fascista que Charles Mayer chamou de }territorial populism, referindo-se seja a um Berlusconi na Itália, seja a um Lukashenko na Belarus, entre tantos outros estadistas de nossos tempos. Poucos são os que conseguem ver nas vitórias eleitorais recentes dos velhos aparatchiks do Leste europeu, além da reação antiliberal dos eleitores, o nascimento de uma nova social-democracia pragmática.
Esta é a verdadeira realidade mundial que FHC se gaba de ser o único candidato a conhecer e assimilar em seu programa de governo. Mas em nenhum momento ele se sente tentado a demonstrar a viabilidade e a compatibilidade de suas várias metas sociais, econômicas e políticas de governo a partir dos constrangimentos impostos por sua particular opção de inserção internacional, indicada pela estrutura de seu Plano Real e pela natureza ultraliberal das reformas propostas por seus aliados na recente e frustrada revisão constitucional. Aliás, está na hora de esclarecer de uma vez por todas que nenhum candidato ao governo brasileiro pode, hoje, deixar de apresentar respostas a uma agenda que se impõe a todos com a força dolorosa dos números: estabilizar a economia, responder ao desafio social da miséria e da violência, reconstruir o Estado e contribuir para a retomada do crescimento. Nesse sentido o que pode e deve diferenciá-los não são suas metas, mas a forma em que pretendem hierarquizar seus objetivos e distribuir os ônus de suas políticas.
4. O que é possível concluir de tudo isto? Que a globalização é irreversível, mas é para todos os países um desafio mais do que uma solução. Ou, nas palavras de Robert Kehoane, "para muitos regimes, a lição é: se adaptar ou morrer", porém "a escolha das estratégias, política e o momento das reformas variam substancialmente de país para país" e estas diferenças são determinadas pela coalizão de forças que conduza o processo da reinserção internacional.
Chalmer Johnson já demonstrou isto, faz muito tempo, com relação ao sucesso japonês, da mesma forma que David Cameron comprovou a maior eficácia das coalizões "neocorporativistas" para realizar ajustes econômicos com menores "custos" sociais.
E quanto a isso, hoje no Brasil ninguém mais tem dúvida sobre as principais coalizões que estão se propondo a governar o país. E nesse sentido, por mais que isto possa ser doloroso para alguns: não foi só por oportunismo, mas por coerência que os tucanos fizeram o possível para aderir ao governo Collor e agora se aliam ao ao PFL. Aqui como em toda parte, faz tempo que os social-democratas viraram neoliberais. O movimento da campanha da FHC parece claro. Acertou o relógio das expectativas ajustando o calendário econômico ao eleitoral. Fechou acordo com os mais tradicionais núcleos de poder, como o oligopólio da TV e o coronelato do Nordeste. Agora só falta o mais (e menos) importante: coletar votos. (Otavio Frias Filho, Folha, 07/jul e 26/jul). E nisto, como é sabido, as esperanças estão depositadas no efeito imediato do Plano Real. Sem subestimar sua capacidade analítica ou sua imaginação nem desconhecer os seus valores, não há como enganar-se: diante da realidade contemporânea, FHC optou de fato por uma coalizão conservadora e de centro-direita. O resto, na feliz expressão de um empresário paulista, é conversa para boi dormir.

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