São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
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Engajamento e excomunhão

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Toda briga de amigos é amarga. Mesmo que o afeto continue, o corte do convívio dói. Estas cartas são tristes. Lendo-as 40 anos depois, sentimo-nos tentados a dar razão a Merleau-Ponty. A atitude de Sartre choca, com sua dificuldade em aceitar que o amigo se emancipe, a excomunhão a que submete Merleau na revista que fundaram juntos, e mesmo a distinção (a lembrar os comunistas) entre afeto subjetivo e aspecto objetivo da ação.
Os dois se gostam, mas "objetivamente" a fala de Merleau opõe-se à ação de Sartre: portanto, se Merleau ainda acredita possível ser "filósofo" (coisa que só cabe aos mortos, entende Sartre), que fale do em-si e do para-si, mas não use a filosofia para desqualificar a política de esquerda.
Sartre relega assim Merleau (que, porém, o precedeu na discussão política séria) a uma filosofia que é "vita privata", contemplação, "otium": sua voz somente será tolerada enquanto inócua. Só lhe dará "vita publica" se for na linha política definida por ele. Tudo isso choca tanto nossa fé na liberdade de expressão, destoa tanto de um mundo sem o referencial soviético, que Sartre parece reunir todos os erros e Merleau, os acertos.
Por isso convém, parafraseando Merleau, não justificar, mas explicar Sartre –e perguntar também por que envelheceram suas posições políticas. Lembrando o que diz M.A. Burnier, autor de um interessante, embora também envelhecido, "Os existencialistas e a política" (1963): "Só enxergar as relações de Sartre ou Merleau-Ponty com a política no momento em que elas se tornam públicas é ocultar uma intenção fundamental".
O referencial comunista, por exemplo, não está totalmente excluído de Merleau, que em 1955 escreve ainda um longo estudo sobre a Alemanha Oriental, crítico, é certo, mas admitindo o caráter operário de um Estado que dois anos antes havia enfrentado forte revolta dos próprios trabalhadores.
Sartre, por sua vez, tem suas distâncias do comunismo. Três anos depois deste debate, indignado com a repressão soviética à rebelião húngara, escreverá um longo ensaio, "O fantasma de Stalin: um acerto de contas com o que é antidemocrático no comunismo.
E, enquanto as cartas que aqui lemos se cruzam no correio, vai editando nos "Temps Modernes o longo artigo "Os comunistas e a paz (1952-1954, inédito no Brasil), que mostra um simpatizante do PC, mas que lhe faz reservas, e também as sofre. Como diz, os comunistas "me acusavam de ter espionado a Resistência em favor da burguesia fascista... "
Mas o fundamental é algo que nos artigos assume maior relevo do que nestas cartas. Sartre conclui que a única via política para a esquerda passa pela aliança com o PC. Bem ou mal (às vezes bem mal), o PC representa a classe operária. Ele é a organização política que assumem os movimentos sociais. O que fazer, então, senão discutir com ele, aceitá-lo como interlocutor para tentar democratizá-lo?
Lembremos o que era a política francesa no tempo da Guerra Fria. Os gabinetes iam e vinham, mas em torno de um consenso centro-direita/centro-esquerda, que excluía parcialmente do governo a direita e completamente do poder a esquerda (os comunistas). Estes governos, para conservar as colônias da Ásia e África, travaram as guerras da Indochina e da Argélia. Centenas de milhares de asiáticos e árabes foram mortos por seus exércitos. Hoje, quando os Estados Unidos (desde Nixon) desistiram de guerrear no exterior e (desde Carter) de apoiar ditaduras ferozes, soa inoportuno colocar no passivo das democracias ocidentais tanto genocídio. Mas foi este o contexto de Sartre.
Tendo de escolher entre dois males, qual preferir? É preciso sujar as mãos, dizia o líder comunista Hoederer, na peça "As mãos sujas (1948), para horror do intelectual Hugo, também comunista, mas que só aceitava os princípios, não a eficácia (em termos weberianos: tinha uma moral da convicção, não da responsabilidade).
Ao contrário do que diz Francis Jeanson numa clássica análise desta peça ("Sartre por Si Mesmo", 1955, editado no Brasil pela José Olympio), Sartre não está inteiramente do lado de Hoederer. Embora despreze Hugo, dá-lhe pelo menos um traço básico de sua filosofia: ele não abre mão da responsabilidade pelo ato que cometeu, ainda que "absurdo". Ou, para falar com Sartre, o homem é o que faz, a existência precede a essência: Hugo é o matador de Hoederer. Se foi por maus motivos, azar. Não renegará o que fez.
Mas Hoederer tem, aos olhos de Sartre, cada vez mais razão. Se queremos agir, temos de tomar partido, "sujar as mãos", e não só no sangue, que é nobre, mas também "na merda" –nas alianças sujas, na mentira. É a pequena moral do intelectual que entra em jogo, num contexto de guerra, ainda que fria. Seria assim errado julgar Sartre apenas por estas cartas, esquecendo que não mudou só o intelectual (hoje, o pensador de esquerda está marcado mais pela dúvida merleau-pontyana e sobretudo pela ação pontual foucaultiana, do que pelas estratégias globais sartrianas), mas, sobretudo, o mundo.
E mesmo assim Sartre, em dois momentos decisivos, afastou-se do PC. O primeiro foi na repressão soviética à revolta húngara de 56, a primeira grande tentativa de unir democracia e comunismo. (Se ela, ou a tentativa de Dubcek na Tchecoslováquia, em 1968, ou a de Gorbatchev na URSS pós-1985, tivessem dado certo, o comunismo não teria morrido, muito ao contrário). Sartre tomou a defesa dos rebeldes, embora acabasse se reaproximando do PC.
A segunda ruptura, e esta definitiva, se dá em 1968. O PC finalmente se revela um partido burocrático, disposto a sacrificar a chance revolucionária de maio de 68 a ganhos salariais e ao reconhecimento, pelo poder gaullista, do poder sindical e partidário dos comunistas. Sartre vai então para os "gauchistes", a extrema-esquerda, mas escolhendo os maoístas.
Por que os maoístas? Talvez Sartre não se tenha afastado do ideal de um PC: um partido forte que organize e represente as massas. Trotskistas e anarquistas criticavam esse modelo. Já os maoístas europeus geralmente se propunham a "reconstruir" um PC que se teria debilitado. Não rompiam com o molde leninista. Mas lhe somavam novas reflexões sobre os intelectuais, de quem suspeitavam, e muito.
Aqui temos dois pontos essenciais no pensamento político de Sartre. Sua reflexão foi balizada pela presença, no horizonte, de um PC forte com o qual negociar, e governada, de dentro, por forte suspeita que sentia quanto aos intelectuais (inclusive a si mesmo), que facilmente viravam "ratos gosmentos. O horizonte sumiu, e os intelectuais, mesmo de esquerda, mudaram de posição quanto à classe operária, reduzindo a culpa que sentiam e passando a defender mais as liberdades "formais" ou "burguesas".
Sem o PC e sem a culpa, o intelectual de esquerda achará Sartre menos atual do que 30 anos atrás, ainda mais porque o trabalhador hoje não tem mais por modelo o operário das indústrias pesadas ou de transformação; mas sempre terá, nele, uma consciência atormentadora, um desafio ao conforto e à complacência.

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