São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
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O futuro de Sartre era fixo

MARILENA CHAUI

dos dados e fatos disponíveis. Se a filosofia for, como pretende Merleau-Ponty, a exigência de, antes de escolher, colocar-se num distanciamento que permita apreender totalidades parciais e não os fatos isolados que formam nossa experiência cotidiana, então, escreve Sartre, "um filósofo de hoje não pode tomar uma atitude política".
Que pretende Merleau-Ponty em julho de 1953? "Que é preciso saber o que é o regime soviético para escolher" a favor ou contra. Ora, retruca Sartre, essa exigência, que parece ser meramente empírica –isto é, a necessidade de possuir mais dados–, é, na realidade, uma dificuldade de princípio, pois nunca possuímos um saber total sobre as condições históricas. Escolhemos sempre sem pleno conhecimento e, sobretudo, não podemos invocar a reflexão filosófica quando somos chamados a reagir ao que é urgente. A filosofia, tal como MP a concebe, o transforma em vítima de uma "paixão subjetiva" perpassado por uma contradição insolúvel: simultaneamente afirma a coexistência entre filosofia e política e exige uma opção entre ambas, ou a filosofia ou a política.
Pior. Merleau-Ponty pretende usar a filosofia "contra" a política (no caso, contra os comunistas) para poder condenar mais depressa os que poderiam condená-lo. Tens o direito, diz Sartre, de escrever teus livros; tens o direito de nada fazer, tens o direito à filosofia como reflexão rigorosa. Mas não tens o direito de criticar os que fazem política e assumem o risco de fazê-la em condições humanas, isto é, tateando, errando e acertando.
Sartre vai mais longe. É a concepção merleaupontyana de filosofia que está equivocada: faz dela uma atitude sonolenta e sonhadora. A imagem do sono e do sonho é usada por Sartre porque o amigo concluíra o elogio da filosofia, na aula inaugural, dizendo que a divisão entre pensamento e ação não é a divisão entre o político e o filósofo, mas habita em todo ser humano. Dizia Merleau: "o filósofo é o homem que desperta e fala, e o homem contém silenciosamente os paradoxos da filosofia porque para ser inteiramente homem, é preciso ser um pouco mais e um pouco menos homem".
Isto, escreve Sartre, não é convincente. Em primeiro lugar, porque faz do filósofo uma espécie entre outras, como se se tratasse de uma aula de zoologia; em segundo lugar, porque é um "auto-retrato do pintor", não esclarecendo se tal idéia da filosofia é um acidente, uma patologia ou uma escolha fundamental. "Não a reconheço como minha". Não pertenço a essa espécie. Mas isso talvez explique a "atitude sonhadora" de Merleau-Ponty em todas as ocasiões urgentes impostas pela política e às quais não respondeu.
Ao que parece, responde Merleau-Ponty, eu teria renunciado à política por haver escolhido a filosofia, à semelhança de alguém que, entre várias profissões, escolheu a de alpinista. Não renunciei à política: recusei conceber o engajamento nos mesmos termos em que o concebes.
O intelectual engajado sartreano é o escritor de atualidades que opina e intervém sobre todos os acontecimentos relevantes, à medida que vão se sucedendo. É um estado de vigília permanente, contra a "sonolência sonhadora". Merleau-Ponty recusa esse tipo de engajamento. Dois motivos o afastam da vigília sartreana, em nome de uma outra vigilância.
Em primeiro lugar, diz ele, porque, ao escrever em conta-gotas sobre cada acontecimento, o escritor induz o leitor a aceitar fatos isolados que recusaria, se pudesse ter uma visão mais abrangente, ou a recusar como odiosos fatos isolados que, se percebesse de maneira mais abrangente, aceitaria. Essa vigília engajada é, afinal, "má-fé". Não informa, não analisa, não reflete, corre e muda ao sabor dos eventos, de tal modo que se fosse dado ao leitor, um dia, reunir o conjunto de manifestos e pequenos artigos diários ou mensais de um intelectual engajado ou de um comentarista político, perceberia a incoerência, a leviandade, a irresponsabilidade daquele que escreve: "isso permitiria fazer engolir no varejo o que não seria aceitável no atacado, ou, ao contrário, em tornar odioso, a golpe de pequenos fatos verdadeiros, aquilo que visto no conjunto faz parte da lógica da luta".
O segundo motivo é espantoso. Com efeito, tendo apresentado o primeiro, seria de supor-se que Merleau-Ponty houvesse atacado Sartre por agir às cegas, manifestando-se em toda parte sobre todos os acontecimentos sem jamais possuir um conhecimento aproximado do todo ou, pelo menos, das linhas de força e vetores dos eventos, não lhes alcançando a significação.
Ora, dá-se exatamente o contrário. É que Sartre construiu, em pensamento e em imaginação, graças à soberania do Nada sobre o Ser, um futuro fixo, mantido em segredo, que regula clandestinamente o curso dos acontecimentos, aconteça o que acontecer. Sartre possui o futuro e a história "em pensamento e em imaginação", sendo-lhe fácil opinar sobre tudo e tomar posição em tudo. Os acontecimentos são a superfície de um sentido secreto, conhecido apenas pelo filósofo que por isso, soberanamente, opina politicamente. Como o Deus de Descartes, envolvido na tarefa cotidiana da criação continuada do mundo, dando-lhe o suporte infinito de realidade, Sartre concebeu o método do "engajamento continuado" que daria substância à política. Espectador absoluto, soberano e transcendente, o filósofo, empoleirado em Sirius, julga ter a chave do tempo, da história e do mundo. Sob a aparente modéstia daquele que, dissera Sartre, sabe que a condição humana é a da escolha na ambiguidade, às cegas, na ignorância do todo, esconde-se a presunção de ser Espírito Absoluto.
Assim, duas concepções da filosofia e da política estão em choque. Não se trata da oposição descrita por Sartre –a da filosofia sonhadora– sonolenta face às urgências da política e da da filosofia como vigília engajada e sem álibis –mas da oposição entre a concepção da filosofia como consciência soberana clandestina que manobra as posições e opiniões políticas (sabendo, de antemão, que não são decisivas nem importantes, porque o curso da história se realiza secretamente com ou sem elas) e aquela que percebe a consciência mergulhada no mundo, fazendo-se na relação com ele e, portanto, não dispondo da chave da história e da política.
A história não é uma lógica da necessidade absoluta, nem a política, a álgebra da história: o revolucionário, escreve Merleau-Ponty, navega sem mapas. Por isso, cada ato, cada gesto, cada palavra, cada pensamento contam na determinação do curso da história e da política, pois está sob nossa responsabilidade compreender as mediações subjetivas e objetivas que orientarão o rumo dos acontecimentos. Manifestar-se sobre tudo, assumir posição e ter opinião sobre tudo, mudar de atitude conforme mudem os ventos, abandonar a obra já escrita é irresponsabilidade, não é liberdade.
Sartre podia afirmar que sua obra já realizada deveria ser esquecida a cada nova circunstância. Julgava, com isto, demonstrar o compromisso da filosofia com a política. Merleau-Ponty, ao contrário, exigiu de sua obra retomada contínua, constância para que as reformulações tivessem sentido e fizessem sentido. Sartre viveu a alegria inflamada da incoerência. Merleau-Ponty, a exigência de um pensamento coerente, capaz de modificar-se sob a solicitação dos acontecimentos, mas jamais para satisfazê-los. Por isso, sabendo que perderia o amigo, escreveu-lhe:
"Quando se está muito seguro do futuro, não se está seguro do presente... Tens uma facilidade para construir e habitar o porvir que é toda tua. Ao contrário, vivo mais no presentes, deixando-o indeciso e aberto, como ele é. Não significa que eu construa um outro porvir... Não é que eu seja um "homem revoltado", e muito menos um herói. Minha relação com o tempo se faz sobretudo pelo presente, eis tudo".
Palavras que ecoarão no prefácio de "Sinais", quando escrever. "O mal não é criado por nós nem pelos outros, nasce do tecido que ficamos entre nós e que nos sufoca. Que novos homens, suficientemente duros, serão suficientemente pacientes para voltar a tecê-lo verdadeiramente? A conclusão não é a revolta, é a "virtù" sem qualquer resignação".
As relações do filósofo com a Cidade são difíceis porque ela lhe pede exatamente o que ele não lhe pode dar: o assentimento imediato, sem maiores considerações. Sartre desejou que tais relações não fossem difíceis, empenhou-se para que o filósofo estivesse engajado por inteiro nos acontecimentos, mas, por isso mesmo, em sua coragem destemida, acabou cedendo às exigências cegas da Cidade, dando-lhe o que ela lhe pedia.

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