São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
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Filósofos têm livros lançados no Brasil

ALBERTO ALONSO MUÑOZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

A "Fenomenologia da Percepção", de Maurice Merleau-Ponty, constitui, junto com "O Ser e o Tempo", de Martin Heidegger, e "O Ser e o Nada", de Jean-Paul Sartre, uma das três maiores obras deste século que brotaram diretamente da fenomenologia –corrente fundada por Edmund Husserl e que ocupou boa parte do cenário filosófico dos últimos 80 anos.
Apresentada à Sorbonne em 1945 como tese de "doctorat d'état" juntamente com um outro trabalho de Merleau-Ponty –a "Estrutura do Comportamento"– a "Fenomenologia da Percepção" é um esforço para descrever os padrões gerais a que nossa percepção obedece e mostrar que a totalidade dos objetos a que nosso conhecimento tem acesso resultam, ou são derivados, de alguma maneira, desse território privilegiado que constitui a experiência perceptiva.
A primeira parte –"Os Prejuízos Clássicos e o Retorno aos Fenômenos"– é uma longa introdução em que Merleau-Ponty passa em revista as teorias tradicionais da percepção: a versão empirista, que compreendia a percepção como um agregado de sensações independentes e desconexas, a intelectualista, que a concebe como o produto da atividade sintética do entendimento humano ou, finalmente, a da fenomenologia de Husserl, que pensava a percepção como o resultado da atividade de constituição própria à consciência transcendental.
Em todos estes casos trata-se sempre de um mesmo equívoco: ao invés de atentar-se para a própria experiência, deixando o fenômeno perceptivo falar, impõe-se um modelo prévio que termina por perverter completamente suas características essenciais.
"Retornar aos fenômenos" passa a significar então, antes de tudo, empreender uma "descrição" rigorosa e minuciosa das estruturas gerais de percepção que evita, a todo custo, sobrepor-lhes um modelo teórico que distorce a natureza do objeto que se quer investigar.
Postas essas diretrizes metodológicas gerais, o restante da obra procurará levar avante esse projeto de descrição isenta da experiência. A segunda parte –"O Corpo"– analisa o objeto privilegiado em que a percepção ocorre: as diversas relações travadas pelo corpo humano com o espaço vivenciado, com a motricidade, com a sexualidade, o trabalho e finalmente, com a fala e a linguagem.
A terceira parte –"O Mundo Percebido"– avança na investigação e introduz a análise do espaço perceptivo em geral, dos objetos dados pela percepção, da distinção entre sonho, alucinação e percepção real, terminando por tematizar um tipo muito específico de fenômeno: a percepção de outrem, abrindo espaço assim para a intersubjetividade e a história.
Finalmente, a última parte –"O Ser-para-si e o Ser-no-mundo"– arremata o trabalho focalizando, pelo mesmo prisma, três temas centrais da tradição filosófica: a reflexão, a temporalidade e a liberdade, entendidas agora como molduras essenciais do território da experiência perceptiva.
Restava, para concluir a tarefa, mostrar como os objetos de nosso conhecimento poderiam reduzir-se a esse campo da experiência perceptiva, agora que ele já foi suficientemente desbravado.
Desde 1945, Merleau-Ponty planejava concluir o projeto com um trabalho que, 15 anos depois, passaria a se chamar "O Visível e o Invisível". Em 1961, Merleay-Ponty falece repentinamente, deixando dessa obra pouco mais de três ou quatro capítulos escritos e uma massa de notas de trabalho esparsas e, em muitos casos, enigmáticas.
Não será preciso mais de uma década para que a filosofia na França e na Alemanha deixe de lado a fenomenologia e parta para novas tentativas, de um certo ponto de vista retornando para um estágio anterior àquele de que se havia partido.
A "Fenomenologia da Percepção" é, hoje, um clássico em todos os sentidos. Escrita num estilo elegante e povoado de metáforas, porém muitas vezes difícil e mesmo obscuro, é o marco inicial de um percurso intelectual que foi seguido, pelo seu autor, até o seu limite.
Embora até certo ponto incompleta, permanece como documento de uma das maiores tentativas filosóficas do século 20.

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