São Paulo, domingo, 14 de agosto de 1994
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Sobrou para o Sartre

CAIO TÚLIO COSTA

O brasileiro mete os pés pelas mãos com uma facilidade extraordinária. Tomem-se as recentes borbulhas sobre Jean-Paul Sartre contra o Encanador, uma tirada que alimentou saraus e conversas politizadas na semana. Arnaldo Jabor, num momento de descontração e desconcentração, lançou a frase segundo a qual agora o brasileiro tem o voto para escolher entre Sartre (Fernando Henrique Cardoso) e o Encanador (Luiz Inacio Lula da Silva).
Ruth Escobar, atriz politizada, reproduziu o desafio num almoço com o mulherio chique-engajado da cidade e deu no que deu. Reações as mais duras e politicamente corretas contra a oposição dos termos, contra o depreciativo Encanador. Só o próprio Lula, como visto, reagiu com ótimo humor: não se vive sem encanador mas pode-se viver sem sociólogo.
Feito o estrago, Ruth Escobar voltou à tona para se redimir. Em artigo publicado segunda-feira na Folha pediu desculpas ao Lula e acabou descontando tudo no filósofo: "Jean-Paul Sartre, ao contrário de Fernando Henrique Cardoso que é um grande político, seria um péssimo presidente do Brasil. No máximo serviria para escrever manifestos."
Êpa, êpa! Quem disse que Sartre alimentou desejos desse naipe? Nem o Nobel de Literatura ele aceitou, porque não via independência na comissão que o outorga na Suécia. Que história é essa de no máximo servir para escrever manifestos? E se o fosse, seria também de bom tamanho, já que poucos neste século escreveram manifestos como Sartre.
Somente nossa vidinha pequena, nossas prisões inconscientes podem levar a uma idéia tão desfigurada de Sartre. Parece que o espírito de Nelson Rodrigues e as milhões de bobagens que ele escreveu sobre Sartre pularam de seus livros para se atarracarem ao pensamento de Ruth Escobar.
O que Sartre fez na quase metade dos anos deste século foi uma coisa muito simples, daquelas que presidente de república nenhuma consegue resolver. Ensinou com simplicidade que o homem está condenado a ser livre. Não disse outra coisa em seus livros filosóficos, romances, artigos e peças de teatro.
Sartre esteve na resistência contra o nazismo, pensou de forma marxista e criticou o próprio marxismo, desafiou o mundo acadêmico tradicional, militou, vendeu jornal de mão em mão nas ruas de Paris, amou revolucionariamente sua mulher, Simone de Beauvoir, fez de si mesmo o que queria na recusa de todos os papéis tradicionais que a sociedade impõe para cada um. "Nós somos aquilo que fazemos do que fazem de nós", eis uma de suas máximas.
Não era santo, nem deve ser cultuado como ídolo. Foi mais um a pretender transformar o cotidiano indigente de todos nós, acorrentados irremediavelmente às conveniências sociais. Sartre é liberdade; liberdade até de assumir as próprias convicções –ou se desculpar.
Sartre é muito maior do que qualquer candidatura das que estão por aí.
Não se mede um Sartre com a diminuta política brasileira.

Ilustração: "A menina do sapato", 1949, fotografia de Geraldo de Barros

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