São Paulo, terça-feira, 16 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Rubem Fonseca derrete busto do compositor Carlos Gomes

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Entrecho policial, períodos curtos e joguinhos de erudição. Esses termos marcaram o escritor Rubem Fonseca em 11 livros escritos desde 1963. Desses, só o último termo se mantém no seu 12º título, "O Selvagem da Ópera", biografia romanceada do compositor campineiro Antônio Carlos Gomes (1836-1896).
O livro foi lançado ontem pela Companhia das Letras, com tiragem de 50 mil exemplares.
O resultado é uma narrativa que poderia ter sido assinada por Sérgio Sant'Anna, João Gilberto Noll ou qualquer outra efígie bel-letrística nacional.
É Fonseca sem o sal da trama; Fonseca querendo passar por sábio do bel canto. Não é bem Fonseca.
Ele alongou as frases. Fez os crimes escassearem. Instalou um Carlos Gomes frívolo e ambicioso no centro da história. E se mostra ralo na erudição operística.
Na página 35, chega a sustentar a tese ultrapassada segundo a qual a ópera nasceu na Grécia antiga. Foi essa hipótese pueril, aliás, que levou a Camerata Bardi de Florença criar a ópera, em 1600.
A insegurança em relação ao tema levou-o a ler 120 livros, viajar para Campinas e Milão e entrevistar especialistas. Reescreveu três vezes a obra. Retirou muitos dados na terceira versão.
O livro faz um cruzamento de romance, ensaio e roteiro cinematográfico. A leitura agrada porque não falta argúcia ao narrador.
Ela se faz presente quando Fonseca brinca com o cinema, como a parodiar o gênero "tie-in" (best sellers produzidos com vistas à adaptação cinematográfica).
O tom inicial lembra um release: "Isto é um filme, ou melhor, o texto de um filme que tem como pano de fundo a ópera, como principal personagem um músico que depois de amado e glorificado foi esquecido e abandonado, um filme que pergunta se uma pessoa pode vir a ser aquilo que ela não é, um filme que fala da coragem de fazer e o medo de errar".
Mas nem Stallone no papel de Gomes tornaria possível o filme. O roteiro é uma sucessão de closes em rostos angustiados, cenas com trajes de época e frases banais em locações como Funchal, Budapeste e Havana. Uma superprodução com tantas cenas de sexo respeitável e tão longas discussões que duraria mais de 5 horas.
Um biltre como herói tampouco tornaria a produção atraente. O autor evitou a visão "panegirical" sobre Gomes: "As aclamações, os louvores, duraram pouco tempo, o tempo de fazer os discursos e erguer as estátuas."
Fonseca derreteu o busto bigodudo e caboclo do compositor para refundi-lo na estátua equestre do garanhão mulato.
Gomes aparece rosnando enquanto compõe óperas superficiais. Arranca a calças rendadas da cantora Nadina Bulicioff. Fuma como um canastrão depois do sexo. Não é capaz de nenhuma frase inteligente. Diz: "A questão não é escrever uma ópera. É conseguir que seja ouvida num teatro, de preferência lotado."
Fonseca o mata na melhor passagem do romance: "Sufocado, Carlos absorve o ar com esforço; seu corpo treme convulsivamente e uma golfada de sangue, misturada com um líquido de bolhas esbranquiçadas, é expelida sobre sua camisola suja".
Carlos Gomes foi um músico mediano e virou vulto de um olho na pátria cega. É divertido vê-lo perder toda a empáfia. Mas fazer do autor de "Fosca" um sujeito sem metafísica, sem um grama de grandeza, e ainda por cima vomitando as vísceras no final, não é lá um perfil muito edificante, ou justo. Mas previsível em se tratando de Fonseca.

Título: O Selvagem da Ópera
Lançamento: Companhia das Letras, 246 págs.
Quanto: R$ 13,00

Texto Anterior: Cineasta faz curta sobre Iberê Camargo
Próximo Texto: A produção cubana 'Morango e Chocolate' foi a grande vencedora
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.