São Paulo, quarta-feira, 17 de agosto de 1994
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A sangria do São Francisco

ROGÉRIO CÉZAR DE CERQUEIRA LEITE

Deve-se usar o bom senso:a boa engenharia nãodeve desperdiçaruma gota d'água sequer
A mais eficiente tecnologia de que se dispõe no Brasil para soterrar um programa eficiente, adequado, barato e funcional é apresentar um sucedâneo grandioso, caro, incompetente, mas com suculentos contratos para as grandes empreiteiras.
Açudes são feitos por pequenas empresas locais, com contratos modestos. Se 23 açudes são insuficientes, por que não 46 para começar se ainda é barato? Ou uma centena de açudes que custariam os mesmos US$ 2 bilhões do projeto de transposição de águas do São Francisco.
Mas cem pequenas obras não são iguais a uma grande obra cem vezes maior. E cem pequenos contratos com cem pequenas firmas não são tão suculentos quanto um grande contrato cem vezes mais caro.
É preciso aprender essa contabilidade muito especial de final de governo, senão ninguém vai entender a necessidade da substituição do programa de açudes para o Nordeste por esse megalômano projeto de transposição de águas.
Esse projeto de irrigação pretende sangrar o Rio São Francisco em aproximadamente 10% de seu volume total de água (260 metros cúbicos/segundo sangrados de 2.800 metros cúbicos/segundo do caudal).
O ponto inicial de sangria seria localizado em Cobrobó, exigindo elevação a 160 metros da água extraída. Nenhum outro local parece melhor localizado. Mesmo assim os maiores aproveitamentos hidrelétricos ficam a jusante. Com esta sangria, 10% do potencial energético instalado a jusante é defenestrado.
Embora a perda aparente maior seja a hidrelétrica Paulo Afonso com mais de 4.000 MW já maquinado, o maior perdedor será Xingó, que terá 5.000 MW quando tiver suas dez máquinas instaladas.
Para citar apenas as mais evidentes, temos ainda a hidrelétrica Apolônio Salles (Moxotó) com 400 MW, Itaparica com 2.500 MW (para as dez máquinas), Belém com 672 MW e Pão de Açúcar com 330 MW.
Cedo ou tarde, os 10% de água desviada terão de ser substituídas por termelétricas convencionais ou nucleares. O potencial seria equivalente ao de duas nucleares iguais à Angra 1, que custaria hoje pelo menos US$ 2 bilhões cada uma.
Aqui uma explicação se faz necessária àqueles que não são especialistas. O potencial hidrelétrico atribuído a uma queda d'água é proporcional ao produto do volume d'água que cai por unidade de tempo pela altura da queda. Um bom aproveitamento é pois aquele que aproveita toda a água do caudal.
É muito difícil fazer em uma mesma altura uma barragem parcial, pois a água tem o mal hábito de fluir e equilibrar-se em uma mesma geodésica.
A solução economicamente mais conveniente é quase sempre fazer a barragem definitiva, portanto, que contém todo o caudal, mesmo que não se possa aproveitar todo o potencial. E as máquinas são depois instaladas progressivamente à medida que possa a energia produzida ser aproveitada.
Entretanto, os custos das obras civis de muito suplantam os das máquinas. Frequentemente chegam os primeiros a 80% do total.
Alguns dos aproveitamentos do São Francisco, embora ainda não tenham todas suas máquinas instaladas a cada ponto, a cada altitude específica, já terão a maior parcela dos investimentos realizada.
Também ocasionalmente se desvia parcela do caudal. Todavia esse percentual é calculado para otimizar o regime sazonal do rio.
A boa engenharia é aquela que não desperdiça uma gota de água. Portanto, o bom senso, senão o conhecimento técnico específico, basta para concluir que se desviamos 10% do caudal, teremos uma perda de 10% do volume de água para o mesmo regime operacional das barragens.
E como potencial é altura vezes volume de água por segundo, teremos uma perda de 10% do potencial que será disponível quando todas as máquinas nas usinas a jusante de Cobrobó estiverem instaladas, mas cujos investimentos já estão praticamente realizados.
É dentro desses limites que afirmamos que estão sendo defenestrados potenciais instalados que custariam hoje duas Angras 1.
Ou seja, o último produto do bestialógico energético nacional é a perda imediata de potenciais elétricos equivalentes a duas Angras 1. Com um enorme agravante, uma termelétrica ou uma núcleo elétrica tem 20 anos de vida útil. No presente caso, as perdas seriam permanentes.
Todo o ano o Brasil perderá devido à energia que deixará de produzir –se considerarmos apenas os aproveitamentos já realizados e aqueles programados para os próximos dez anos– US$ 500 milhões (considerando o preço médio internacional do quilowatt hora de US$ 0,046 e potencial firme de 55% da potência instalada). E isto até o fim dos tempos.
Será que esses planejadores de meia-tigela não percebem que seria muito melhor para o país aplicar esses US$ 500 milhões por ano na construção de açudes?
Ou seja, se o São Francisco não for sangrado, o que ele deixar de perder seria suficiente para implantar um conjunto de 23 açudes a cada ano, ou melhor, o atual programa nacional de açudes a cada ano.
Em poucos anos esse glorioso rio poderá doar ao Nordeste um sistema de irrigação muito melhor distribuído e mais eficaz que esta indecorosa sangria de suas águas.
E não consideramos ainda os custos da energia para levantar esta água toda a 160 metros e as perdas de aproveitamentos já inventariados a jusante de Cobrobó, mas não incluídos nos planos imediatos da Eletrobrás.
Talvez um potencial equivalente a mais de uma ou duas Angra 1 fossem necessários.
Se quiséssemos, entretanto, uma nuclear que talvez funcione, pois Angra 1 tem servido mais para enfeitar o litoral Norte de São Paulo do que para gerar energia, talvez pudessemos usar Angra 2 como comparação.
De acordo com a Eletrobrás, ela já custou US$ 5,25 bilhões e exigiria mais US$ 2 bilhões. De acordo com Furnas, custou até agora "apenas" US$ 4,65 bilhões e demandaria ainda US$ 1,35 bilhão.
Com isso o quilowatt/hora de Angra 2 ficará a US$ 0,16, o que é cinco vezes mais que o preço corrente no Brasil.
Às vezes temos a impressão que é a mesma mentalidade, senão a mesma equipe, que é responsável tanto pelo programa nuclear brasileiro, quanto pelo projeto de transposição de águas do São Francisco.

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