São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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Os tributos no nascimento da democracia

ÁLVARO ANTÔNIO ZINI JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Em Atenas compreendia-se bem a importância de ter as finanças públicas em bom estado e isto está evidenciado pelo fato de que quase todo orador ou estadista eminente fizesse referência constante às finanças da cidade. Desde Aristides, que estabeleceu os fundamentos da hegemonia ateniense (...), a Péricles, que consolidou a supremacia econômica de sua terra e fez vasto programa de obras públicas para embelezar a cidade e gerar empregos para a população. E, finalmente, a Demóstenes, que ensinou como orador e homem público que 'ter dinheiro é necessário (ao Estado) e sem ele nada que é necessário pode ser feito'. Conhecimento de finanças era considerado uma qualidade elevada, não apenas para o administrador público, mas também para líder militar. A isso, homens como Alcibiades e Timoteus devem muito de sua glória militar."
A. Andreades, "A History of Greek Public Finance", Harvard University Press, 1933, pag. 203-4.

O caderno Finanças da Folha vem trazendo, aos domingos, a pedagógica contraposição de pontos de vista de Oziris Lopes Silva e Marcos Cintra sobre como devem ser os impostos no Brasil.
Com vizinhos de coluna tão ilustres, e como o bate-boca está animado, julguei que seria interessante trazer uma perspectiva histórica para os leitores: como eram os tributos e a noção de cidadania na Grécia, no nascimento da democracia. As coisas já foram bem diferentes!
A democracia floresceu na Grécia nos séculos 5º e 4º AC. Sua expressão mais vigorosa deu-se no governo de Péricles (469 a 429 AC). Uma situação sólida das finanças públicas, para uma cidade como Atenas, que se defrontava com frequentes campanhas militares e precisava custeá-las, tinha uma importância vital, pois a cidade que perdia a guerra podia ser saqueada e seus moradores mortos ou escravizados.
Na Atenas clássica não havia impostos ("algo imposto") e não havia cobradores de imposto. Os recursos necessários ao Estado e às festividades públicas (para a encenação das tragédias, das comédias, as corridas de archote, a preparação das Olimpíadas) eram coletados de doações regulares dos cidadãos.
Esses tributos voluntários eram oferecidos à administração da cidade em procissões públicas denominadas "liturgia", das quais toda a população tomava parte.
As liturgias eram regulares e em certas datas do ano; cada chefe de família levava sua contribuição sob a vista dos demais. A persuasão moral (e a disputa para não ficar abaixo do vizinho) era o principal modo como se coletava tributos.
O civismo dos gregos era forte e cresceu na medida que cresceram suas liberdades políticas. O cidadão sabia que assim como, em tempos de guerra, a pátria podia demandar suas vidas, em época de paz, requeria a dedicação de horas com os assuntos da Assembléia, dos tribunais e outros deveres comunitários.
Entretanto, mais do que tudo, acreditavam que a virtude consistia em oferecer o sangue, o tempo e os recursos voluntariamente, em defesa da liberdade da cidade!
Um dos tributos mais interessantes foi a "eísfora". Em tempos de guerra ou quando alguma obra extraordinária era julgada necessária, reunia-se uma assembléia especial para aprovar esse tributo especial.
A eísfora incidia sobre o valor das propriedades, as quais estavam devidamente registradas nos "diagramas" públicos. Tratava-se de um imposto sobre o capital.
Outro tributo importante, e também sob a forma de contribuição voluntária, foram as trierarquias. Tratavam-se de contribuições para construir os ágeis barcos trirremes. Tanto a construção quanto a manutenção da equipagem corria por conta dos que tinham mais recursos.
Não julgue o leitor que tudo isso se sustentava em um regime brutalmente escravocrata. Na época enfocada, a maioria dos moradores de Atenas era de homens e mulheres livres.
O historiador alemão Belock estimou que, por volta do ano 430 AC, Atenas possuia uma população de cerca de 230 mil pessoas: 120 mil eram cidadãos livres (incluindo-se crianças e mulheres), 30 mil eram metecos (estrangeiros) e 80 mil escravos.
Os templos da Acrópole, por exemplo, foram todos construídos por homens livres, com recursos do Tesouro público.
Vindo para o presente, é claro que as regras tributárias de Atenas não podem ser transpostas para o século 20: mudou a sociedade, mudou a base econômica. E onde encontrar tal civismo? Mas pode-se tirar algumas lições.
Primeiro, a noção de cidadania. Que beleza se nossas elites compreendessem a ligação direta entre pagamento de tributos, civismo e o bem-estar comum da comunidade. Democracia, afinal, são direitos e deveres compartilhados.
Segundo, era inconcebível em uma cidade grega haver gasto de dinheiro público sem que antes isso tivesse sido expressamente aprovado pela Assembléia. Uma situação como a da nossa "democracia" que, em agosto, ainda não tem um Orçamento federal aprovado, mas tem autorizado gastos por decisões do Executivo, seria reputada como uma tirania. E a luta contra a tirania foi a marca do cidadão grego.
Terceiro, e isso está documentado em diversos períodos da história, os cidadãos pagam impostos com mais boa-vontade quando é mais direta e perceptível a ligação entre o tributo e sua destinação.
Quarto, a noção de publicidade. As liturgias, as eísforas e as encíclicas, todas eram pagas em público. O argumento da dissuasão moral fazia-se forte para quem pensasse em não pagar.
Que tal se se publicasse a lista de quem paga Imposto de Renda? O sr. fulano de tal, deseja ser candidato a presidente? Quanto pagou de Imposto de Renda?

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