São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sociedade impede aumento de impostos

OSIRIS LOPES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os períodos de crise constituem fase da vida e da realidade das instituições e das pessoas propícios à mudança. Fragilizados os valores, os nortes, as tradições, surge a ambiência adequada a que se busquem novas soluções, novos compromissos, nova ética.
O que antes parecia permanente, com ares quase de eternidade, sofre um processo de corrosão que leva à ruptura, exigindo que ocorram transformações para adequação à nova situação que vai emergindo.
A nossa sabedoria futebolística já consagrou o ditado de que "em time que está ganhando não se mexe". Contrário senso, se estiver perdendo, é hora de se fazer as alterações.
A crise não é necessariamente positiva ou negativa. Em realidade, ela é potencializadora de transformações, e nisso contém um elemento criativo e inovador.
O rompimento com o passado e com o estabelecido em um determinado momento, conforme sejam propostas as soluções para superá-la, pode ensejar o atingimento de um estágio de modernização e desenvolvimento superior ao anterior.
O Estado brasileiro tem sofrido uma crise financeira quase permanente. A Constituição de 88 não conseguiu estabelecer um disciplinamento que possibilitasse uma melhoria significativa da sua estrutura e de seu funcionamento.
Inequivocamente houve um fortalecimento do modelo descentralizado, com o desenho de um federalismo consistente sob o ponto de vista de atribuições de competências tributárias mais potentes aos Estados, Distrito Federal e Municípios.
Aliás, a Constituição atual é tão descentralizada que inovou a teoria do pacto federativo, que até então estava centrada nos Estados-membros.
Alterou o conceito de autonomia municipal previsto nas Constituições anteriores, e num exagero, possivelmente retórico, colocou em seu artigo 1º o município como partícipe da própria Federação, em posição de igualdade com os Estados e o Distrito Federal na formação do novo modelo federativo.
Para ilustrar o enfraquecimento financeiro do poder central, é de se recordar que no ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) foram incorporados cinco impostos que anteriormente eram da competência da União: os três impostos únicos (incidentes sobre energia elétrica, combustíveis e lubrificantes e minerais do país), além dos impostos sobre transporte rodoviário e sobre comunicações.
Elevou-se também o nível de participação dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios na arrecadação do IPI e do Imposto de Renda. Na Constituição anterior essa partilha correspondia a 33% do volume arrecadado por tais impostos. Hoje, a União é sócia minoritária do IPI e do Imposto de Renda.
A transferência obrigatória de recursos decorrentes do IPI corresponde a 57% do total arrecadado. O Fundo de Participação dos Municípios fica com 22,5%, o dos Estados com 21,5%, o Fundo de Desenvolvimento do Norte, Nordeste e Centro-Oeste com 3% e, finalmente, 10% são destinados a compensar o desempenho das exportações realizadas pelas empresas situadas nos Estados, Distrito Federal e municípios.
No âmbito do Imposto de Renda a destinação de recursos é um pouco menor. Estima-se que se situa entre 50% e 52% do total de sua arrecadação. Explica-se essa variação. Os Fundos de Participação dos Estados, Distrito Federal e Municípios somados ao do desenvolvimento do Norte, Nordeste e Centro-Oeste ficam nos 47% do seu produto da arrecadação.
Entretanto, dispõe a Constituição que o Imposto de Renda retido na fonte sobre os pagamentos feitos a terceiros pelos Estados, Distrito Federal, municípios, suas autarquias e fundações consiste em receita própria dos três primeiros. Estima-se –eis que não há estatísticas adequadas– que tal receita varia entre 3% e 5% do total arrecadado.
Interessante, que pode acontecer que a União tenha que restituir a um contribuinte do Imposto de Renda que seja, por exemplo, funcionário estadual, o imposto que ela não arrecadou.
Basta que ele tenha sofrido incidência na fonte e, na declaração de ajuste, apresente um quadro em que esteja isento ou deva, como imposto, uma quantia inferior à anteriormente submetida à retenção.
As distorções do modelo de partilha tributária vigente são variadas. A União perdeu, em relação à situação anterior, cerca de 25% do que arrecadava, diminuindo drasticamente sua potência financeira.
Todavia, não houve uma transferência de encargos para os Estados, Distrito Federal e municípios proporcional ao acréscimo por eles obtido em suas receitas.
A primeira reação de grande parte dos municípios foi a de canalizar o incremento de recursos para despesas correntes, não prioritárias e nitidamente fisiológicas, como elevação dos vencimentos dos prefeitos e vereadores, contratação de novos servidores, realização de obras não prioritárias, absorvendo improdutivamente o excedente financeiro.
Paralelamente, surgiu um fenômeno avassalador de criação de novos municípios para participarem do rateio do Fundo de Participação.
Disso resultou que a receita própria de cerca de 4.000 municípios não ultrapassa 3% da receita disponível obtida decisivamente das transferências obrigatórias federais e estaduais.
Há um processo nitidamente deseducativo nisso tudo. Os municípios de pequeno porte, que são a expressiva maioria dentre eles, transformaram-se em frágeis paraísos fiscais para os seus habitantes, que pouco ou nada contribuem para o custeio dos serviços municipais.
Sem sacrifício tributário, os municípios são pouco vigilantes da ação dos governos municipais na realização dos seus gastos.
Os desperdícios, o clientelismo, as irregularidades, a realização de obras supérfluas e a má gestão passaram a ser as práticas adotadas.
Não se está defendendo uma tese masoquista de tributação de que o cidadão tenha que se sacrificar para dar valor ao controle da aplicação dos recursos feita pelo governo municipal.
A experiência social demonstra que os contribuintes são mais zelosos e vigilantes quando o suporte financeiro do ente público é feito substancialmente por eles.
A fiscalização feita em decorrência da CPI do Orçamento demonstrou que algumas instituições financiadas pelas chamadas subvenções sociais vinculadas aos parlamentares investigados, inexistiam na prática.
Muitas vezes tinham uma contabilidade composta por despesas fictícias, formalizadas em notas-frias, ou eram utilizadas em benefício de uma minoria de controladores, dissociadas de objetivos sociais.
O Fundo Social de Emergência, instituído pela Emenda Constitucional de Revisão nº 1, de 1994, que é na prática mais de emergência do que social, resultou em uma tímida, mas razoavelmente eficaz, medida destinada a prover os cofres da União de maior aporte de recursos, diminuindo a sangria consagrada no elevado nível de transferências obrigatórias de recursos previstos na Constituição atual.
É pressuposto básico do plano de estabilização a ausência de déficit orçamentário. Esse objetivo seria alcançado se houvesse uma gradual mas crescente elevação da arrecadação federal, principalmente obtida no combate à evasão, já que a tradicional fórmula de elevação da carga tributária, por meio do aumento dos impostos, está interditada pela opinião pública, agora mais atuante.
Eis aí um calcanhar de Aquiles do plano de estabilização. A médio prazo a situação tende a se agravar, posto que o IPMF –monstrengo criado para obviar a crise financeira, fazendo juz ao "P" de provisório de sua denominação, pela Emenda Constitucional nº 3/93, que o instituiu– extinguir-se-á em 31 de dezembro deste ano.
Tudo indica que mais urgente do que uma reforma tributária, cujo sentido é sempre biunívoco (elevação da carga tributária, na ótica do Estado; simplificação e alívio tributário, na perspectiva do contribuinte), é uma reforma financeira que possa recompor o caixa da União e uma reforma estrutural do Estado que possibilite o equilíbrio entre a receita disponível pelos entes públicos e o elenco de encargos correspondentes.

Texto Anterior: O bafo da política
Próximo Texto: Alta no real já é de 41,82%
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.