São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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Eco e Narciso definem os limites do homem

DONALDO SCHULER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Que admira Eco em Narciso? A plenitude, a mesma que admiramos na criança e no herói. O adorado humilha o adorador. Trata-se de um processo masoquista. O adorador inflamado e torturado se aniquila em benefício da glória do adorado.
Como poderia Eco resistir à sedução de Narciso? A plenitude –seja nas crianças, nos animais, nas flores ou nos deuses– seduz. Eco é atraída pela arrogância do jovem como ninfa e como mutilada. Narciso amplia a maldição. Recusada por Narciso, Eco resseca. No caminho à secura da pedra, ela perde o caráter de auxiliar da fecundidade. Ecos ameaçam de esterilidade a poesia. Ovídio fecunda os versos com sonoridade flexível, inventiva, imprevisível.
A indiferença de Narciso não ficou impune. Narciso transformou-se em eco da Eco que tratara com impiedosa dureza. Não estamos autorizados a considerar ecos visuais as imagens que o seduzem no espelho da água? Como Eco, Narciso está condenado ao jogo fatal dos reflexos. E como Eco, Narciso resseca.
Dotado de fala, mas de uma fala que o leva de si a si mesmo, Narciso se aproxima do monólogo exterior. As palavras de Narciso lembram a fala de atores dirigida ao auditório, embora se distinga dela. Narciso fala cativo de sua própria imagem. Ovídio explora os recursos dessa situação ímpar. Conflita a personagem com um mundo reduzido a simulacros. O beijo, signo de comunicação íntima, materialização de palavra apaixonada, se esvai na incomunicação. Beijos nulos agitam o lago. O abraço, gesto que une corpos, cai no vazio, reflexos inconsistentes apaixonam o olhar. Ovídio configura a experiência do nada.
Eco, tratada do princípio ao fim em terceira pessoa, comparece como objeto da fala, sem ascender a situação de sujeito nunca. Condição de sujeito alcança Narciso e assim penetra no âmago de seu tormento. Embora compreenda que se apaixonou por reflexos de si mesmo, não consegue desembaraçar-se dos simulacros que o fascinam. Isso já não é caricatura de mente doentia, Ovídio capta segredos da imaginação.
Entendamos o amor-paixão, vezeiro na literatura greco-latina. O de Fedra pelo enteado, o de Medéia por Jasão, o de Órfeu por Eurídice, o de Dido por Enéias. A incomunicabilidade incendeia, mutila, destrói. Narciso e Eco definham acometidos da mesma doença. Narciso e Eco definem os limites do homem: a palavra não atravessa a rocha, os reflexos congelam na imagem. Na rigidez, Narciso e Eco traçam os símbolos da morte.

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