São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Espelhos contemporâneos

MIRIAM CHNAIDERMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dois poetas jovens, profundamente "antenados" com o contemporâneo, ambos pesquisadores de linguagem, criadores de videoimagens (Régis Bonvicino dirigiu com Cássio Maradei o vídeo "Tatuagem"; o livro "Nomes" de Arnaldo Antunes é acompanhado de um vídeo), falando de um esvaziamento de um Eu que se fecha em um "signo incógnito", "em-mi mesmado", "desorganizado", um "eu em mim mesmo" em Arnaldo Antunes, em um "Narciso impreciso" em Régis Bonvicino.
Mas um esvaziamento que os leva à criação, à escritura. Um "mi mesmado" faz música, Borges, em um diálogo com analistas (publicado em Buenos Aires, "Del escrito", ed. Incidencias Freudianas) fala da necessidade que a arte tem de dar alegria através das palavras, mas que não seriam apenas alegrias. Afirma: "Eu diria sobretudo, a arte de assombrar, de fazer com que o leitor se assombre; mas não que se assombre do talento do poeta, mas que o leitor sinta que está em um mundo muito estranho, que ele próprio é muito estranho..." a arte irrompe no mundo causando estranheza, quebrando os espelhos que cada um tem de si.
Diante da pergunta de um psicanalista sobre se na escritura, no momento de escrevê-la, a arte se congelaria e ao mesmo tempo conservaria a multiplicidade de sentido para que o leitor a recrie, Borges diz que acha "congelar" punitivo e que prefere a imagem do cristal, por seu caráter mágico.
Caráter mágico, resgate de uma relação mítica com o universo que passa a ficar pleno de estranhas forças cósmicas que abalam a relação eu-tu. Pierre Lévy, em "As Tecnologias da Inteligência" (Ed. 34) mostra a fragmentação do sujeito pensante: se a mente passa a operar através de técnicas de transmissão e armazenamento, imbricada sempre em uma megassociedade, deixa de haver sujeito ou substância pensante: "O pensamento se dá em um rede na qual neurônios, (...) livros e computadores se interconectam, transformam e traduzem as representações."
Pierre Lévy aponta no sujeito cognitivo o que Freud, retomado por Deleuze e Guattari, já propusera: deixa de haver a possibilidade de ver o indivíduo como uno, a subjetividade é múltipla. O desejo descentra o sujeito. E o narcisismo, como fica nessa barafunda toda? Se temos que repensar a própria noção de "Eu", desvinculando-a da de indivíduo, como repensar o narcisismo? O que passa a querer dizer o "eu em mim mesmo" de Arnaldo Antunes e o "Narciso de um impreciso" de Régis Bonvicino?
Seria muito simples seguir a linha, por exemplo de Cristopher Lasch em "O Mínimo Eu" (Brasiliense) e falar que o mundo tecnológico isola as pessoas, falar de uma solidão inerente ao progresso, criticar o consumismo capitalista que estimularia o narcisismo em cada um... Jurandir Freire Costa já criticou esse tipo de pensamento que confunde traços culturais com traço psicopatológico (no artigo "Sobre a Geração AI-5: Violência e Narcisimo", incluído em "Violência e Psicanálise", Ed. Graal).
O conceito de narcisismo foi formulado por Freud a partir do seu estudo sobre a psicose do presidente Schreber. É um estágio normal da evolução da libido, condição para que o sujeito venha a se conectar com o mundo. Para Freud, haveria dois narcisismos, um primário e outro secundário. No narcisismo primário ainda não há um eu constituído, não há diferenciação entre o eu e o não-eu.
Lacan liga a formação do eu à imagem do corpo próprio: ao se olhar no espelho através do olhar da mãe, a criança que antes se vivia como um corpo despedaçado, fascina-se com a imagem do espelho e toma-se como sendo esta imagem. O narcisismo secundário é a retirada da libido que está investida nos objetos a que o sujeito se liga no decorrer de sua vida, a partir do momento em que passa a existir eu e não-eu: a representação do objeto é suprimida, o próprio Eu tornando-se o objeto. Ou seja, no narcisimo secundário ocorre sempre uma identificação.
Seja secundário, seja primário, o narcisismo questiona um delineamento claro entre o eu e o mundo dos objetos –diz Régis Bonvicino: "Na pele, corpo em torno do quase nada. Narcisismo e êxtase, no sentido eisensteiniano: a leitura do mundo na fusão cósmica como condição de criação.
No lugar da abertura para o cosmos, observamos, entre outros fenômenos, o aumento de serviços telefônicos os mais esdrúxulos –desde aconselhamentos idiotas até serviços eróticos e mesmo tarô, I-Ching, etc. Parece ser difícil suportar esta tensão que constitui o ser sujeito entre o despedaçamento, necessário em qualquer momento mágico, e a busca de uma imagem no espelho onde se tenha a ilusão da inteireza...
No Brasil, depois de tantos mil planos econômicos, sendo que na era Collor houve mesmo a espoliação da intimidade de cada um que teve seu dinheiro posto a serviço sabe lá do quê, só resta batalhar pelo futebol, pelo basquete, pelo vôlei, e chorar muito pela morte de Ayrton Senna... Alimento narcísico, ainda que venha de algo depositado em uma imagem idealizada, é preciso para sobreviver. Se a questão for apenas sobreviver, mas "a gente não quer só comida..."
Quando falta uma base mínima para que cada um possa viver, através do narcisismo, o contato com o mundo, só resta criar nossa imagem em conversas telefônicas com nós mesmos. A sociedade faz malabarismos para que cada um mantenha uma imagem inteira de si mesmo. Viver o conflito entre a fragmentação que nos é inerente e a constituição de uma imagem própria, parece ser muito ameaçador.
Principalmente quando o mundo que nos cerca fornece tão poucas formas de constituição de um núcleo narcísico que permita a experiência de perder-se nos fluxos dos astros. Arnaldo Antunes e Régis Bonvicino não têm medo de se perder no mundo. Sabem até mesmo perder-se em e de si mesmos...

Texto Anterior: Um tratado da ambivalência
Próximo Texto: Eco e Narciso definem os limites do homem
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.