São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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A neurose nº 1 da socidade contemporânea

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

Até 15 anos atrás, narcisismo era só aquilo que os dicionários ainda definem como "amor excessivo a si mesmo". Termo sem sentido fora da teoria psicanalítica, o narcisista não é apenas um ególatra auto-suficiente, mas também pode ou merece ser visto como alguém cujo ego, demasiado frágil, não consegue suportar a diferença.
O narcisista típico é um sujeito que busca continuamente negar sua marginalização, adaptando-se às expectativas dos que o cercam. Adaptando-se e readaptando-se a novas exigências, mantém a ilusão de que ele e o mundo são uma coisa só. Seu retrato psicanalisado revela um hábil manipulador de aparências e sentimentos, durão por fora, mas flexível e inquieto por dentro, porque nervosamente avesso a compromissos e vassalo do reconhecimento alheio, a droga preferida de sua alma vazia.
O que houve 15 anos atrás? Um livro deslocou o conceito de narcisismo da psicanálise para as ciências sociais. E o narcisista nunca mais conseguiu ser apenas aquele ser presunçoso que se julga um deus ou, no mínimo, um Gerald Thomas. A partir de 1979, com a publicação de "A Cultura do Narcisismo", de Christopher Lasch (Imago), o narcisista passou a ser conhecido ainda (ou sobretudo) como o tipo neurótico predominante na sociedade contemporânea.
Ok, os psicanalistas já haviam notado essa epidêmica propagação, mas Lasch foi o primeiro a analisar a montante narcísica como uma complexa reação psicológica a um amplo reordenamento sociopolítico.
Gradualmente deslocado de suas funções básicas –na casa e no trabalho–, o homem contemporâneo se refugiou nas fantasias de distinção que o consumismo lhe oferece. Desesperado para impressionar, mas ao mesmo tempo desdenhoso daqueles que almeja impressionar, tornou-se o candidato ideal ao sucesso nas mais altas esferas corporativas, onde a performance conta menos que "visibilidade", a impetuosidade e a falta de escrúpulos para vencer.
Nada mais natural que, num mundo engolfado por imagens, o progresso pessoal se faça através de imagens projetadas, de falsas impressões elaboradas por egos inseguros. Num mundo assim, não há como separar, com a necessária nitidez, o real da fantasia, a verdade da publicidade e o que somos de fato daquilo que os produtos que consumimos sugerem. O que antes se aprendia em circuito mais íntimo, agora nos é imposto por técnicos especializados, os superegos do "savoir-faire", os tecnocratas da "auto-ajuda", a cujas lições sobre tudo a maioria se curva, como se do aprendizado delas dependesse a sua sobrevivência.
Dependência de massa gerando ansiedade de massa, e vice-versa. O anseio de sobreviver a qualquer preço é uma manifestação de narcisismo, garante Lasch, que se estendeu mais por esta vereda em "O Mínimo Eu" (Brasiliense), escrito para esclarecer algumas observações malcompreendidas de seu primeiro best seller.
A expressão best seller assusta. Dá a impressão de que "A Cultura do Narcisismo" não passa de uma cascata sociológica pop. Não é, apesar da impressão (sempre ela!) deixada por alguns críticos e por este resumo pobre, reducionista e, quem sabe, algo confuso que vocês estão lendo. Lúcido, sugestivo e meticuloso, o ensaio de Lasch faz uma síntese crucial de Freud e Marx, influenciada pelas idéias mais luminosas da Escola de Frankfurt, os primeiros a discutirem a dissolução do indivíduo sob o cultura de massa.
A tese central de Lasch é a seguinte: o capitalismo avançado causou uma devastação cultural e psicológica sem precedentes, erodindo nossa capacidade de auto-ajuda e autodisciplina. Com o ego invadido por forcas sociais, ficou mais difícil crescer e evoluir sem o sentimento de pânico face ao olhar alheio.
Liberais, conservadores, até feministas, acusaram Lasch de elitista, nostálgico e patriarcalista. Lasch duvida que a educação tradicional, por si só, fortaleça o ego. Assim pensam os liberais. Discordando dos conservadores, não vê com otimismo a distribuição "democrática" dos progressos alcançados pela sociedade de consumo, até porque eles, como sabemos, não foram democraticamente distribuídos. Quanto às feministas, elas, não todas, defendem o narcisismo como um impulso feminino salutar, como uma alternativa ao cruel e prometeico anseio do homem para dominar o mundo. Lasch acha que o narcisismo, como os anjos, não tem sexo –e não é um impulso salutar.
Em resposta a seus críticos, num simpósio organizado pela revista "Salmagundi", Lasch lançou um desafio: não há como enfrentar os problemas que hoje (1979) nos afligem –crise energética, desemprego, inflação, miséria etc– sem a disciplina e o sacrifício coletivos que a cultura do narcisismo aboliu. E arrematou: "A questão fundamental é saber se esses problemas serão decididos democraticamente ou impostos por estados autoritários. A meu ver, só um novo movimento por reformas radicais pode fornecer um foco democrático para o descontentamento popular. Receio, porém, que uma forma bem mais sinistra de paternalismo possa substituir o atual estado empresarial-burocrático com um sistema abertamente autoritário de controle social, enraizado numa psicologia ainda mais regressiva e violenta que o narcisismo".

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