São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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Exibicionismo eletrônico transforma anônimos em astros

ESTHER HAMBURGUER
ESPECIAL PARA A FOLHA

A mídia eletrônica estimula impulsos narcisistas em escala nunca antes vista. As inúmeras redes, as transmissões via satélite, os circuitos transnacionais de televisão, o vídeo caseiro, oferecem a possibilidade de difusão de imagens de rostos, corpos e histórias pessoais, através de canais capazes de penetrar a intimidade privada de cada lar. Da aparição exaustiva das estrelas de rock transmutadas em cada clip, à atual onda de documentários pessoais entre os produtores de vídeo independente nos EUA, aos relatos íntimos em programas do tipo "Aqui, Agora" ou "Hebe por Elas", o vídeo vem se tornando um meio privilegiado de expressão da ânsia contemporânea pela exposição pública de si. A televisão nos satura de narcisismos variados que disputam diferentes estratégias de mobilização dos sentidos e constituição de identidades.
Os videoclips abusam da afirmação narcisística de músicos que se querem estrelas. Olhares e gestos sedutores exibem identidades construídas especialmente, em narrativas saturadas de efeitos, editadas de maneira frenética. São histórias que afirmam a força poderosa do ídolo, capaz de enfrentamento e transgressão, inclusive da transmutação total. O clip explora até o limite a possibilidade que o vídeo oferece, de construção de personagens. Até os corpos dos músicos, único referente palpável capaz de resistir a sucessivas transformações de identidade de clip para clip, está sujeito à modelação –vide Michael Jackson.
Mas o vídeo pode ser também o meio de contestação da lógica narcisística do espetáculo clip. Se o clip se define por explorar a fluidez de sua relação com as personalidades descritas –aquelas figuras assumirão novos contornos em novos clips, sugerindo que um novo ego pode ser construído a cada produção– o videodocumentário personalizado se define pela busca de uma autenticidade perdida –recorre à biografia de seus realizadores na tentativa de criar raízes.
"Minha câmera é extensão de meu corpo", afirma Ellen Spiro diretora do premiado "Greetings From Out Here". A câmera portátil com que ela mesmo fotografa seus filmes é antes instrumento de seu contato com o mundo e secundariamente, meio de produção de um filme. Avessa ao artificialismo da produção das estrelas, ela busca apreender o cotidiano de comunidades marginais. Como alternativa ao distanciamento que separa o artista de sua audiência, ela, seu cachorro cardíaco e a perua "van" usada para percorrer as estradas do Sul dos EUA em seu road movie gay, estão no vídeo. Spiro faz de suas relações com os amigos que faz e documenta no caminho o assunto do trabalho.
Coerente com este projeto, o documentário é belamente realizado com simplicidade, sem muitos efeitos, com uma só câmera portátil que privilegia a subjetiva da diretora-personagem. O resultado é um diário pessoal de seu contato com o mundo. Se aproxima do pastor gay, acompanha sua preleção, entrevista-o em sua casa. Em busca de romper qualquer distanciamento, sua câmera olha pelo retrovisor, acelera, focaliza o detalhe das gotas de chuva no vidro dianteiro. Sua própria voz narra em off sua trajetória de criança no sul a adulta em Nova York, ilustrada por fotos em preto e branco. O vídeo começa com a exposição de uma personalidade partida e se apresenta como um projeto de reconstituição da unidade perdida.
A busca singela de autenticidade de documentários pessoais como o de Spiro, se contrapõe à arrogância do clip, mas ambos compartilham um exibicionismo básico expresso através do vídeo, que é replicado na ânsia dos telespectadores em expor seus próprios dramas.
Se um dia os espectadores se contentavam em contemplar as transgressões da vida das estrelas, hoje estão preparados para expor as suas. A um só tempo seduzidos e chocados, fascinados e repelidos pelo excesso de intimidade e sensualidade, se tornam atores em potencial. Siderados pelo potencial de difusão descontrolada de imagens e estimulados pelo número crescente de programas participativos, se vêem como portadores de experiências pessoais veiculáveis na telinha. É como se a exibição pública garantisse a realização pessoal. E a maioria está preparada para desempenhar diante de uma câmera.
Há algo nesse excesso de exibicionismo narcisista que é exacerbado pela imagem do vídeo. Existe disputa entre diferentes estilos de confrontar a diluição dos vínculos de representação, mas talvez uma vinculação material esteja sendo recomposta através da capacidade do vídeo de atingir e mobilizar os sentidos. A imagem do vídeo é literal e chapada, mas refeita em cada aparelho de televisão a partir de invisíveis pontos eletrônicos.
Talvez por ser fragmentada, intensa e óbvia, ela confronte o telespectador diretamente, com poucas mediações, sensibilizando diretamente suas sensações corpóreas e estimulando-o a se manifestar nos mesmos termos. As imagens do vídeo dificultam à classificação de verdadeiro ou falso, real ou artificial. Se elas resistem a interpretações essencialistas, talvez seu significado possa ser buscado na sua capacidade de mobilização do exibicionismo.

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