São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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Uma metamorfose

HAROLDO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ezra Pound terá sido o poeta que, modernamente, mais de perto perseguiu a persona de Dante. Seus inacabados "Cantos" –mais de cem!–, ruína monumental, magnífica, também se articulam em visões (do Inferno, do Purgatório e do Paraíso), embora estas seções não seja, como na "Comédia", ordenadas segundo um projeto definido, mas se disseminem fragmentárias, ora aglomerando-se em blocos, ora dissolvendo-se, dispersas, ao sabor do périplo em que o poeta-Odisseu embarca.
Diferentemente de Dante, porém, Pound não elege como guia, em sua viagem, Virgílio (poeta pelo qual não mostra maior apreço), mas Ovídio (43 a.C. / 17-18 d.C.). O poeta das "Metamorfoses" é o nume tutelar de Pound, permitindo-lhe pensar (para uso dos "Cantos") na captação do "momento mágico" ou de metamorfose: "irrupção do cotidiano no mundo divino ou permanente".
Numa conversa com Yeats, por este recordada ("A Packet for Ezra Pound), o poeta dos "Cantos" explica seu projeto: "Não haverá enredo, nem crônica de eventos, nem lógica do discurso, mas dois temas: a descida no Hades, a partir de Homero e, a partir de Ovídio, 'Metamorfose', misturando-se com tudo isso figuras medievais ou modernas."
Na bibliografia poundiana, entre os itens obrigatórios, existe um ensaio de Sister M. Bernetta Quinn que trata longamente da presença ovidiana em Pound: "The Metamorphose of Ezra Pound" (Motive and Method in the Cantos of Ezra Pound, Columbia University Press, 1954, antologia de estudos organizada por L. Leary).
Refere a autora: "Significativamente, o entusiasmo de Pound por Ovídio e, em particular, pela tradução isabelina de Arthur Golding, tem lugar ímpar entre as suas ardorosas defesas de autores antigos e modernos. Suas cartas e críticas estão cheias de recomendações a seus companheiros artistas no sentido de que se ponham a ler as 'Metamorfoses', exaltadas por ele e pela Idade Média (embora por razões distintas) em nível análogo ao das Escrituras. Pound as coloca entre as cinco obras literárias indispensáveis à cultura, na elevada companhia das 'Odes' definidas por Confúcio, dos poemas homéricos da 'Divina Comédia' de Dante e das peças shakespeareanas."
Uma passagem do "Spirit of Romance", citada pertinentemente por Sister Bernetta Quinn, deita luz sobre o uso de "técnicas ovidianas" em "The Cantos". Pound, distinguindo entre Ovídio e Apuleio (autor de outras }Metamorfoses, em elaborada prosa pré-picaresca, "O Asno de Ouro", século 2º d.C.), assinala: "Ovídio, antes de Browning, faz os mortos ressuscitarem e disseca seus processos mentais; ele caminha em companhia do povo do mito; Apuleio, na vida real, deixa-se confundir com seu herói fictício."
O que, ademais, desgostava Pound no "Asinus Aureus" de Apuleio era o pendor bizantino de seu estilo extravagante, precursor, segundo o autor dos Cantos, do "Cultismo" espanhol.
A incompreensão de Gôngora e do barroco, de fato, constitui uma lacuna no paideuma poundiano (embora, curiosamente, seus "Cantos" já tenham sido comparados pelo crítico Allen Tate ao livro de Apuleio, no sentido de que ambas as obras procederiam de "mundos sem crença"). Por outro lado, um amador de ruínas provido de um olho benjaminiano poderia reconhecer traços dispersos de barroquismo no esplêndido, mas derrocado e inconcluso edifício dos "Cantos".
O que importa, porém, é frisar o impacto de Ovídio em Pound, a partir do "Canto 2º", onde o episódio dos marinheiros ímpios, que raptam e se propõem vender como escravo um menino no qual se encarnava Baco, é reconfigurado em lances ovidianos extraídos do Livro 3, 511-733, das "Metamorfoses".
Por outro lado, a nítida precisão imagista com que Pound, através de Ovídio, foi capaz de retratar a metamorfose do menino-deus, Baco, diante dos marinheiros estupefatos, que começam, por seu turno, a se transformar em seres marinhos, nem sempre foi avaliada pelo crivo poundiano da "definição precisa".
O autor das "Metamorfoses" foi acusado de "defeito de unidade" em seu "carmen perpetuum", em seu magno poema expandido em 15 livros, aos quais faltaria "o plano, a ordenação regular" da "Eneida" virgiliana. J. Chamonard, em quem a devoção por Ovídio não apagou os traços do conservantismo acadêmico (trata-se do responsável pela tradução comentada do poema, Edições Garnier, Paris, 1953), louva a mestria do poeta latino, mas registra, em leve tom reprobatório, que "a forma importava para ele mais do que o fundo", como no caso dos poetas alexandrinos que o influenciaram; que "nada tinha mais valor a seus olhos que um fragmento de consumada perfeição".
Exalta-lhe, sobretudo, o "caráter plástico" das descrições, mas aponta uma inclinação excessiva do poeta para a criação de neologismos (já que não lhe bastariam os recursos da língua de Cícero e Virgílio...). No seu balanço avaliativo, "tudo não é igualmente digno de louvor no estilo das Metamorfoses". E Chamonard explica: "Assim como o gosto moderno faz reservas à composição do poema, faz também restrição a alguns de seus modos de expressão", já que o poeta incidiria por vezes em "preciosismo destonante", em "virtuosismo excessivamente visível".
Na verdade, qualquer que seja a idéia de "gosto moderno" que esteja por trás das opiniões cautelosas do tradutor da edição Garnier do poema, a verdade é que a modernidade, tal como a representa a poesia de nosso século, é remontável a Ovídio através de duas vertentes distintas, podendo, por ambas, reclamar-lhe a herança.
Por um lado, com o fluxo de seu "carmen perpetuum", desprovido de unidade épica, poderia medir-se a "epopéia sem enredo" ("plotless epic", Hugh Kenner) poundiana; como também o ideal poundiano do momento mágico de mutação surpreendido pelo olho, a captação do movimento das formas pela cinética da imagem (exemplo disto o já referido episódio de Baco, menino que se revela um deus, à medida que a hera vai-se enroscando no madeirame da nave e os marinheiros que o ofenderam vão assumindo formas písceas, braços virando nadadeiras, caudas despontando, dorsos que se infletem encurvando-se como golfinhos).
Por outro lado, a linguagem ovidiana, aspirando a uma "recarga de temas de beleza" (para repetir uma frase de Dâmaso Alonso eficazmente descritiva do estilo de Gôngora), poderia, por seu turno, ser reivindicada como legado no plano textual por poetas requintados como, de maneira distinta, Paul Valéry na área francesa e José Lezama Lima, cubano, na de língua espanhola, o primeiro aspirando a uma pureza apolínea, o segundo barbaramente dionisíaco.
"Ô semblable!... Et pourtantplus parfait que moi-même,Ephémère immortel, si clair devant mes yeux,Pâles membres de perle, et sescheveux soyeux,Faut-il qu'à peine aimés, l'ombre les obscurcisse,Et que la nuit déjà nous divise,ô Narcisse,Et glisse entre nous deux le ferqui coupe un fruit?"
Ou, numa tradução aproximativa:
"Ó semelhante e tão mais perfeito que eu mesmo,Efêmero imortal que os meusolhos obseda,Membros, pálida pérola, os cabelos seda,Que a sombra os escureça entãoserá precisoApenas porque amados? Que anoite, Narciso,Já deslize entre nós, lâmina,qual num fruto?"

Quanto a Lezama Lima, cultor de Gôngora como de Mallarmé e Valéry, seu Narciso, surreal pela associação imprevista de imagens e suntuosamente barroquista pela dicção exasperada na metáfora; seu Narciso –prossigo– busca-se no "rubro espelho da morte, conchado som", para vanificar-se em salto icárico, abismado na preamar do nada:
"Así el espejo averiguó callado,así Narciso en pleamar fugó sinalas."
(Assim o espelho averiguou calado,assim Narciso em preamar fugiusem asas.")

É que em Lezama, como está posto no "Preludio a las eras imaginárias", o tema ovidiano e valeryano se enreda, labiríntico, no onírico: "As metamorfoses se submergem nos rápidos das escuras águas soníferas."
Estas digressões visam a preparar a apresentação do leitor de minha transcriação do episódio ovidiano da "Morte de Narciso" (Metamorfoses, 3, 407-510). Traduzi os hexâmetros latinos em versos dodecassílabos e tive presente, no curso de meu trabalho, a tradução de Antonio Feliciano de Castilho, que envelheceu mas é de boa cepa literária. Dou apenas uma amostra comparativa, tomando como pedra-de-toque os versos 509-510, momento em que o efebo Narciso se transforma na flor de mesmo nome, de pétalas brancas e centro (medium) amarelo (croceum).
Ovídio:
"Nusquam corpus erat. Croceum pro corpore floremInveniunt foliis medium cingentibus albis."
Castilho:
"Quando, em lugar do corpo,acham no sítioUma flor, cróceo o olho, as folhas alvas."

Allen Mandelbaum (competente tradutor da íntegra das "Metamorfoses", mais de 12 mil versos, para o inglês, Harcourt Brace & Co., New York, 1993, trabalho que me foi assinalado por Nelson Ascher):
"but nowhere could they findNarcissus' body:where it has been, they foundinstead a flower,its yellow center circled by white petals."

Minha tradução (aproveitando uma deixa de Castilho para a transposição de medium, centro, coração, olho):
"Mas o corpo não há. Eu seulugar floresceum olho de topázio entre pétalasbrancas."
Uma advertência: não pretendo aqui reabrir a querela Ovídio vs. Virgílio. Ambos os poetas são indispensáveis (e complementares) para a apreensão e a apreciação da poesia latina da era de Augusto. A opção poundiana foi operacional e deu seus frutos na elaboração dos "Cantos" do poeta americano. Já Virgílio teve as suas "Bucólicas" magistralmente vertidas ao francês por Paul Valéry, sua "Eneida" recriada com ousadia, num francês deliberadamente alatinado, por Pierre Klossowski, e viu-se celebrado num soberbo romance de Hermann Broch ("Der Tod des Vergil" / A morte de Virgílio, 1945).
Ademais, uma relação dialógica, no nível intertextual, se desenvolve entre os dois poetas. Como assinala Sara Mack ("Ovid", Yale University Press, 1988), num certo sentido, as "Metamorfoses" " são a resposta ovidiana a Virgílio", já que a obra contém muito da temática virgiliana. "Do princípio ao fim" –prossegue a estudiosa– "as 'Metamorfoses' estão abarrotadas de citações da Eneida"...

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