São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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A MORTE DE NARCISO

A MORTE DE NARCISO
(Metamorfose III, 407-510)
Ovídio
407Fonte sem limo, pura em ondas límpidas, jorrava. Nem pastor se cahega, nem pastando seu rebanho montês, ou gado avulso, acode.
410Nem pássaro, nem fera, nem, tombando um ramo pertuba
a úmida grama que o frescor irriga.
O bosque impede o sol de aquentar este sítio.
Da caça e do calor exausto, aqui vem dar Narciso, seduzindo pela forma amena.
415Se inclina , vai beber, mas outra sede o toma: enquanto bebe o embebe a forna do que vê.
Ama a sombra sem corpo, a imagem, quase-corpo.
Se envaidece de si, e no êxtase pasmo, é um signo marmóreo, uma estátua de Paros.
420De bruços, vê dois sóis, astros gêmeos, seus olhos Contempla seus cabelos dignos de Apolo ou de Baco; suas faces, seu pescoçoo branco, a elegância da boca; a tez, neve e rubor.
Ni mirar-se, admira o que nele admram.
425Deseja-se a si próprio, a si mesmo se louva, súplice e suplicado, ateia o fogo e arde.
Quantos beijos vazios deu na mentira d'água!
Quantos vezes tentou captar o simularco e mergulhou os braços abrançando nada!
430não sabe o que esta'vendo, mas no ar se abrasa: o que ilude seus olhos mais açula ao erro. - Crédulo buscador de um fantasma fugaz! O que busca não h': se te afasta, desfaz-se. Esta imagem que colher é um reflexo: foge,
435não subsiste em si mesma. Vem contigo. Fica se estás. Se partes - caso o possas - ela esvai-se. Nem Ceres - o alimento, nem o sono - paz, nada o tira de lá. Prostrado em relva opaca contempla as falsas formas sem saciar os olhos.
440Por seu olhar se perde. Meio-erguido, os braços aos bosques circunstantes agitando, indaga: "Houve, bosques, como este, outro amor tão cruel? Sabeis. destes refúgio a muitos que sofriam de amor. Houve outro em tantos séculos de vida
445- vossa memória é longa - que como eu penasse?
Vejo o que amo, mas o que amo e vejo, nunca posso tomá-lo, e em tanto erro insisto amando. O que mas dói porém: não nos separa um mar, montes, caminho longo, sólidas muralhas.
450Água exígua nos tolhe. O outro também aspira a mim: sempre que beijo a amada face líquida, seus lábios refletidos tendem para os meus.
É como se o tocasse"nos impede um mínimo. Sai fora dessa fonte! Vem! Por que me iludes.
455evasivo menino? Em formas ou idade,
nada em mim pode haver que te repugne. Ninfas me amarram! No teu rosto leio bons peenúncios: quando te estendo os braços, braços me distendes: se rio, sorris, lágrimas respondem lágrimas,
460se choro; a meu aceno, acena tua cabeça. Advinho palavras em tua linda boca, móveis palavras, que ao ouvido não me chegam. Sou eu este outro! Não me ilude a imagem fútil. Queimo no amor de mim, no incêndio que me ateio.
465Que hei de fazer? Rogando, sou rogado. A quem e como suplicar? A mim cobiço e tenho: pobre e rico de mim. Quero evadir meu corpo, desejo estranho num amante! Separar-se daquilo mesmo que ama. Agora a dor me vence.
470Exaurido de amor, expiro em minha aurora. A morte não me pesa, alivia-me as penas. Quisera perdurar naquele a quem adoro: ambos, num só concordes, morreremos juntos". Diz, e volta abismado a contemplar o espelho
475d'água, e o turva de lágrimas, e a imagem vão em círculos dissipa-se. Ao vê-la que foge, exclama: "Fica! Não me destituas, má visão, cruel fantasma em que me nutro e onde, intocado de mim, deliro de paixão".
480Rasga, doido de dor, as vestes em pedaços e pune o peito nu com seus dedos de mármore. ferido, o peito vai-se tingindo de rubro, como um fruto que em parte se oferece branco e em parte enrubesce; ou as uvas num cacho,
485imaturas, aos poucos se fazendo púrpura. Quando - igual - se revê na onda liquefeita, não mais suporta. Como a cera loura funde ao fogo leve e a fria geada matutina desfaz-se ao sol, assim Narciso, pouco a pouco,
490pela chama de amor se fina e se consome. Sua tez não mais figura neve enrubescida, nem força, nem vigor, tudo o que à vista agrada, nada resta em seu corpo, outrora amado de Eco, a ninfa, que ao fitá-lo se condói, ferida
495embora pelo seu desprezo. A ninfa chora e "Ai!" lhe responde aos "ais", duplica seus lamentos. Toda vez que ele fere os braços, repercute o som dos golpes Eco. Às águas familiares voltando o olhar, Narciso diz com voz extrema:
500"Fugaz menino amado! Ai! E o sítio em torno lhe repete as palavras. Diz""Adeus!" e "Adeus!" retorna a ninfa. Então no verde pousa a fronte. A noite lhe clausura os olhos , luz que se ama. Recebido no Inferno, assim mesmo esses olhos
505 se deleitam,mirando-se no Estígio. Choram. As Náiades o rimão, em tributo cortando os cabelos. As Dríades deploram. Eco ressoa o pranto. As tochas fúnebres se agitam. Mas o corpo não há. Em seu lugar floresce um olho de topázio entre pétalas brancas.

Transcrição de HAROLDO DE CAMPOS

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