São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Eleição será teste para democracia mexicana

CARLOS FUENTES

Uma única palavra ocupa o epicentro da eleição mexicana de 21 de agosto: credibilidade.
Há 66 anos o Partido Revolucionário Institucional, com suas sucessivas siglas PNR, PRM e PRI, tem sido a igreja política da Revolução Mexicana, e as revoluções, como bem sabemos, geram sua própria legalidade.
O partido não perdeu uma única eleição presidencial e, até muito pouco tempo atrás, nenhuma eleição para governo de Estado.
Controla as duas Câmaras e, sobretudo, é um partido controlado, em sua cúpula, pela autoridade presidencial, e em sua base muito obscura pelos caciques, pelas chefaturas policiais e pelos interesses concretos dos exploradores das regiões, dos municípios e das comarcas mais distantes do país.
A comparação entre a longa permanência do PRI no poder e os casos dos social-democratas suecos ou dos liberais japoneses não é aceitável. Esses partidos jamais são acusados de se manterem no poder mediante fraude. O sistema mexicano tem se assemelhado mais a outros sistemas de partidos de Estado: a União Soviética ou a Espanha franquista.
Em Moscou, a desintegração do partido coincidiu com a desintegração de um império. Mas em Madri a transição à democracia foi possível graças à vontade e à inteligência dos atores políticos, com o rei Juan Carlos atuando como fiel da balança.
Em 1975, entretanto, a situação espanhola não era muito diferente da situação mexicana em 1994. Trata-se de uma grande divergência entre as realidades econômicas, sociais e culturais e as práticas políticas. Estas, na Espanha de Franco ou no México do PRI, já não são representativas daquelas.
E isto acontece não porque o México seja plenamente moderno, mas porque a nação e a cultura são tão variadas, tão plurais, tão antigas e tão novas em sua economia, sua cultura, sua relação social, que o PRI, se alguma vez foi criado para impor ordem e coesão à anarquia militar pós-revolucionária, já não pode justificar-se impondo unidade monolítica ao país criado, em grande medida, pelas instituições revolucionárias.
A cultura mexicana carece de correspondência política. Esta só lhe pode ser proporcionada pela democracia ao mesmo tempo pluralista e integradora.
Hoje nós mexicanos sabemos que a nação é mais do que o Estado: é a cultura. Sabemos que o Estado é mais do que o partido: é o projeto do bem comum. E sabemos que o partido é menos que tudo: é, ou deve ser -como seu nome indica- uma parte. E é este o propósito central da eleição mexicana: separar a nação e o Estado do partido, para que floreçam a identidade da nação e sua cultura.
A justificativa do sistema presidencial PRI-governo tem sido: a democracia é lenta, o autoritarismo é rápido. Mas é bom insistir que o México, assim como outro país de tradição autoritária -a Espanha-, tem sua própria vocação democrática.
Ela provém de tradições comunitárias indígenas, de leis humanitárias da Coroa espanhola. Provém, sobretudo, das lutas sociais constantes do povo mexicano: pela terra, por trabalho, pela justiça.
Na eleição de 21 de agosto o México conta com o melhor sistema eleitoral de sua história. É preciso dar crédito à independência das autoridades eleitorais, à respeitabilidade e credibilidade dos conselhos de cidadãos, à transparência física das urnas, ao próprio fato de se poder exercer o voto secreto, atrás de cortinas.
Embora não tenham se concretizado as cabines para assegurar melhor vigilância, o voto está encorajado graças à acessibilidade dos locais de votação. E onde estes são distantes, esperemos que funcione o sistema previsto para assegurar a presença de observadores e representantes da oposição.
A concordância entre as listas e as credenciais eleitorais satisfaz a alguns, mas não a outros. A esta altura já não é possível passar o pacote eleitoral em julgamento: é preciso colocá-lo à prova ou retirar-se da disputa.
Um eleitorado alerta deve registrar irregularidades que porventura venham a ocorrer no próprio dia da eleição. E a partir da prova eleitoral, o pacote poderá ser revisto. Os eleitores querem uma contagem rápida dos votos, o anúncio dos resultados no próprio dia da eleição e um pronunciamento claro do IFE (Instituto Federal Eleitoral) sobre a confiabilidade das eleições, antes e depois de sua realização.
Outras vitórias não foram concretizadas. A desigualdade vigorou nos meios de comunicação eletrônicos: seis a um a favor do PRI. Os limites impostos aos gastos eleitorais não funcionaram de forma equitativa: o PRI sozinho gastou mais que todos os outros partidos juntos. Houve pressão do empresariado. Houve pressão dos governadores. Houve pressão dos pequenos exploradores e caciques.
Apesar disso, as manifestações favoráveis à oposição são as maiores de nossa história política. Tão grandes que tornam inacreditáveis as sondagens que atribuem ao PRI até 46% das intenções de voto, contra 26% do PAN e apenas 8% para o PRD. É fato que nos falta cultura eleitoral, que as pessoas são cautelosas, que ninguém anuncia sua verdadeira intenção, e que a soma das intenções permanece oculta para as sondagens.
Existe, porém, algo mais. As manifestações da oposição têm fundamento. As do PRI não podem tê-lo: esse partido não possui vocação de luta, e sim de acomodação e traslado; não explora a fé, e sim o meio.
Cedo ou tarde, o acúmulo de fraudes, intransigências e impunidades que marcaram os 66 anos do partido oficial no poder lhe serão cobrados. O PRI é visto como fraudulento, salvo prova em contrário.
Hoje podemos ver que o PRI tem sido e é uma tragédia para a democracia no México e uma tragédia para si mesmo. Porque é trágico que um partido possa vencer legitimamente uma eleição e que, não obstante, ninguém esteja disposto a acreditar nisso. Será que o PRI só pode demonstrar que é democrático, perdendo uma eleição? Basta fazer-se essa pergunta para admitir que o anti-democrático é negar a priori que o PRI possa vencer uma eleição limpa.
Mas o país está tão ferido, tão dolorido, tão desconfiado, que possivelmente apenas a derrota do PRI e a alternância no poder possam satisfazê-lo.
Com todos os riscos que acarreta, me parece mais perigosa, daqui até o ano 2000, a perpetuação do PRI do que a oposição no poder. Cárdenas ou Fernandez de Cevallos talvez possam formar administrações mais amplas e representativas do que as do PRI atual. E os empresários e funcionários, superado o pânico inicial, se acomodariam às vicissitudes da vida: sempre se pode negociar com o poder.
Um olhar bem-intencionado sobre o país indicaria, em lugar disso, que desta vez pelo menos é possível que a realidade coincida com o ideal. Dir-se-ia que as manifestações públicas, a opinião e até mesmo a intenção oculta darão a cada partido porcentagens semelhantes, entre 35 e 40%.
Um resultado apertado porém digno de crédito poderia contentar a todos e encorajar todos a prosseguirem na tarefa de construir uma democracia mexicana. Nestas circunstâncias, o inacreditável não seria a eleição. O inacreditável seria a violência pós-eleitoral. Na medida em que o pluralismo se instalasse nas câmaras, nos governos estaduais, nos legislativos locais e nos municípios, o caminho à democracia e à paz seria ampliado.
O que precisa ficar claro é que, vença quem vencer –PRI, PAN ou PRD–, os avanços democráticos no México não são concessões gratuitas. Foram conquistados, em tempo histórico, pelas lutas sociais do povo mexicano e também pela vontade democrática que o PAN vem demonstrando há meio século, e pelos mortos que a militância do PRD registrou neste sexênio.
Seja qual for o resultado, não resta ao México outro caminho senão fazer valer seus direitos pacificamente e prosseguir sua luta pela democracia, vença quem vencer.
Pois nem Zedillo, nem Cuauhtémoc nem Diego passam de episódios de um acontecimento eleitoral. A democracia é um processo que inclui esse acontecimento, mas que depende, para criar uma cultura, de muitas outras coisas: federalismo, separação de poderes, limites ao presidencialismo, independência e responsabilidade da importação de justiça, liberdade municipal etc.
Ponhamos à prova o que conquistamos. E no dia seguinte à eleição, julguemo-la com mentes atentas. É preciso denunciar as fraudes; é preciso dar prosseguimento às metas. A democracia será colocada à prova no dia 21 de agosto, mas não começará nem terminará no dia 21 de agosto. Já se obteve muito. É preciso obter mais. É preciso esgotar as vias legais e os procedimentos pacíficos, e quando estes se esgotarem, é preciso redobrar a imaginação e o esforço para abrir novos caminhos. Não nos deixemos derrotar pela raiva, pela ignorância, pelo rancor. Esta seria a verdadeira vitória do PRI dinossáurico.
O destino do partido oficial é deixar de sê-lo e converter-se em partido simplesmente, de centro, persuasivo, democrático, dialogador. Se isso não acontecer, cavará sua própria sepultura.
Porque adiante dos partidos, mais além das eleições, o que está se movendo no México é a sociedade civil, seus diversos estratos, sua problemática cultural e econômica, que às vezes coincide tematicamente apesar das diferenças de classe, às vezes concentrada nas afrontas sofridas pela classe despossuída e ultrajada. A sociedade mexicana tomou a dianteira dos partidos e do governo.
O mínimo que estes podem fazer é respeitar a vontade da sociedade quando, no domingo, ela se manifestar nas urnas.

Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: TRÊS VISÕES DO FUTURO ECONÔMICO DO MÉXICO
Próximo Texto: Instabilidade marca processo eleitoral
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.