São Paulo, quarta-feira, 24 de agosto de 1994
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'A Causa Secreta' disseca o horror no Brasil

MARCELO COELHO

Da Equipe de ArticulistasACausa Secreta", filme de Sérgio Bianchi em cartaz no Espaço Banco Nacional, não foi feito para agradar ao público. Vemos a dissecção de uma cobaia, a agonia de um travesti portador do HIV, uma ratazana prestes a ser queimada viva, um esfaqueamento, um suicídio, sem contar diversos casos de crueldade moral e cenas de humilhação explícita.
Torna-se praticamente impossível, assim, "recomendar" o filme. O crítico, habituado ao esquema "vá ver/não vá ver", "é bom/não é bom", depara-se aqui com um objeto estranho, radical, intratável.
No roteiro da Folha aparece uma carinha com sorriso ao lado de "A Causa Secreta". A mesma carinha com sorriso acompanha "O Rei Leão", de Walt Disney, "Quatro Casamentos e um Funeral", de Mike Newell, "A Noite", de Antonioni.
Não se trata, evidentemente, do mesmo sorriso. "O Rei Leão" agrada a todo mundo, é o filme "recomendável" por excelência. "A Causa Secreta" é o oposto; é um filme "horrível" –mas interessantíssimo.
O primeiro mérito de "A Causa Secreta" é, sem dúvida, o de abolir qualquer avaliação de tipo mercadológico. Insisto em dizer que não tenho a menor simpatia pelo cinema nacional, a meu ver esquemático, preguiçoso, feio, grotesco, inepto e duro. Mas talvez estejamos assistindo a uma superação dos seus defeitos mais evidentes.
Até há algum tempo, o fato de um filme brasileiro ser ruim não importava muito. A precariedade geral era aceita como produto do subdesenvolvimento; cultuavam-se o mau gosto e a estipudez como se fossem emblemas da brasilidade.
É claro que, deste ponto de vista, tudo se justificava. Quanto pior, melhor; já que o Brasil é uma porcaria, o melhor é mergulhar na lama, afundar de vez num subdesenvolvimento autêntico. Se o filme é ruim, o país é pior: então estamos quites.
Várias alternativas, entretanto, surgiram frente a essa atitude ao mesmo tempo derrotista e triunfal. A primeira foi a de assumir a ruindade como pura paródia: "A Maldição da Múmia", de Ivan Cardoso, faz por exemplo a paródia dos filmes de terror classe C americanos. E, como estamos nós mesmos na classe C, a pobreza, o clichê e a falta de orçamento se tornam virtudes, numa perspectiva bem-humorada, derrotista e feliz.
Da paródia dos filmes americanos classe C, passamos à ironia diante dos filmes americanos classe B. "A Dama do Cine Xangai", "A Maldição do Sampaku" são exemplos nacionais de filme "noir" da década de 40, onde o viés metalinguístico buscava dar conta, ainda, da precariedade técnica do cinema brasileiro.
Atualmente, o quadro é diverso. Um filme como "Capitalismo Selvagem" apresenta, como referência para o deboche, não mais Hollywood mas sim as novelas da Globo. Seu cinismo crítico não se ressente de complexos de inferioridade típicos do Terceiro Mundo, mas aproveita as próprias deficiências terceiro-mundistas (de orçamento, produção etc.), numa revolta ainda debochada contra a burrice da TV.
"Lamarca" atesta um progresso técnico, uma fluidez narrativa, uma objetividade de filmagem, um acerto na direção de atores, que no fim adquirem um efeito paradoxal. Pois é justamente em defesa política de um guerrilheiro heróico, anticapitalista, que se fez o mais "moderno", o mais ágil dos filmes nacionais da última safra.
Passo ao largo de "A Terceira Margem do Rio" e de "Alma Corsária", ruins e "nacionais" ao velho estilo.
Nesse contexto, como situar "A Causa Secreta"? Sua virtude está justamente em não se apoiar em coisa alguma. Nem no padrão de referências dos clichês do cinema americano, nem no padrão de referência dos clichês do cinema ou da novela brasileiros.
Há, talvez, um padrão de referência: o das reportagens tipo "Aqui Agora", com a explicitude das cenas em hospitais do Inamps, dos assassinados à luz do dia, do sangue e da violência.
Mas, com isso, Sérgio Bianchi não fez um filme simplesmente paródico ("Aqui Agora" é de certo modo paródia de si mesmo) nem puramente ruim, no modelo clássico do filme nacional que quer ser ruim de propósito. Sérgio Bianchi não fez um filme ruim, fez um filme mau. Que dói no espectador.
"A Causa Secreta" é, como se sabe, título de um conto de Machado de Assis. Um homem rico, Fortunato, dedica-se a cuidar de doentes numa casa de saúde. O motivo não era abnegação cristã, mas prazer sádico em ver o sofrimento alheio. Nas horas vagas, Fortunato dedicava-se a torturar ratinhos.
O conto de Machado de Assis tem, sobretudo, o impacto chocante de um estudo psicológico veraz e sombrio. Não transcende o aspecto individual, e há algo de psiquiatria clínica na narração.
O filme de Sérgio Bianchi parte do enredo machadiano para chegar a conclusões mais desagradáveis. Uma trupe de atores, sob a tutela violenta, histérica e bem-intencionada do seu diretor (Renato Borghi), cuida de adaptar o conto de Machado de Assis à cena teatral.
Para se familiarizarem com a dor, os atores são intimados a buscar, na realidade brasileira, o que de mais horrível possam encontrar. Hospitais públicos, casas de abrigo para travestis, tudo aparece então no filme.
A gente se espreme na cadeira do cinema. O horror não está apenas naquilo que os personagens vêem no mundo real, mas naquilo que fazem, nas violências que estão a reger seu relacionamento mútuo.
O filme trabalha, assim, com três horrores: o horror do conto de Machado de Assis, o horror das atitudes dos atores que devem encená-lo, o horror da realidade brasileira em que buscam inspiração.
À medida que os atores da peça tomam contato com a barbárie em curso no país, discussões se travam: é culpa da burocracia, diz um; é culpa das elites, diz outro. No fundo, e esse a meu ver é o ponto mais sutil, mais rico do filme, todos estão discutindo a seguinte questão: por que o Brasil é tão ruim? Ou seja, onde está "a causa secreta" do inferno em que vivemos?
Não se trata, portanto, de uma mera adaptação de Machado de Assis. O título –"A Causa Secreta"– remete não apenas ao conto de Machado como também amplia a pergunta; onde está a raiz do Mal presente na sociedade brasileira? No filme, meninos crentes interrompem a conversa dos personagens para pedir dinheiro. Os pesonagens tratam-nos porcamente. Será que uma situação social iníqua termina criando um sadismo psicológico?
Ou seja, é possível ainda sentir culpa diante da miséria? Ou estamos tão acostumados a ela que só sentimos tédio, ou no máximo raiva, de suas vítimas? E na própria caridade não haveria algum sadismo?
É a esta vertigem que nos convida o filme de Sérgio Bianchi. Pena que, frequentemente, o roteiro se julgue mais radical e cruel do que é de fato. Explosões emocionais, conflitos histéricos entre os personagens, irrompem no filme de maneira forçada, como se a todo custo o diretor quisesse "radicalizar". Sobrecarrega a cena sem necessidade. Mas o importante foi feito: "A Causa Secreta" faz o espectador sofrer e pensar. Desde que se disponha ao teste de ver o filme até o fim.

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