São Paulo, quinta-feira, 25 de agosto de 1994
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Seguidores de Wagner trocam arte por beleza

LUÍS ANTÔNIO GIRON
ENVIADO ESPECIAL A BAYREUTH

Em Bayreuth há hoje um francês e um japonês para cada alemão que adentra o Festspielhaus, o teatro criado por Wagner em 1876 no monte Huegel para ser o santuário de sua própria arte. O que essa gente procura ao subir de táxi a al. Siegfried Wagner? Certamente não mais a religião da arte. Procura, talvez, o culto da matéria –vá lá, da matéria da cultura.
É duvidosa a existência neste momento de wagneritas convictos, aqueles fiéis seguidores da obra de arte total que faziam a peregrinação anual à pequena cidade da Francônia, na região central da Alemanha. O que há são franceses ciosos do cultivo da cultura, japoneses em busca de exotismo e alemães atrás de boa música.
O próprio Wagner não reconheceria sua criação. No últimos 50 anos, o festival passou por um processo de desnazificação, ou de desgermanização, levado a cabo por dois netos do compositor –Wieland, morto em 1966, e Wolfgang, que completa 75 anos no próximo dia 30 e há 28 anos é o todo-poderoso do evento.
Wolfgang forneceu um caráter empresarial e multinacional ao evento. Seus patrocinadores vão do Japão aos EUA. O diretor contrata anualmente os melhores diretores cênicos, maestros e cantores para apresentar a obra do avô.
Wolfgang não pára. Planeja para o próximo ano a substituição da montagem de "O Navio Fantasma" deste ano pela reprise de "Tahnaueuser", com direção de Werner Herzog. Para 1996, Wolfgang pretende dirigir "Os Mestres Cantores de Nurenberg", há muito fora do palco sagrado. O maestro será o favorito dos Wagner: o argentino Daniel Barenboim.
Somente o fator qualidade artística sustenta a máquina (o taumatógrafo, para roubar o nome de uma versão da lanterna mágica) wagneriana.
Na virada do século, era o inverso. Música mal tocada e um ofício religioso pesado. Pelo menos é o que atestou o escritor inglês George Bernard Shaw nas visitas que fez ao Feststpielhaus. Ele reclamava dos gritos dos cantores, mas sentia uma atração animal pelo fenômeno do wagnerismo.
Na época, havia como conseguir ingressos no dia da récita. Hoje, os do "Anel dos Nibelungos", cuja última jornada começou segunda e termina hoje, acabaram em novembro do último ano. Pessoas ficam paradas diante da "Tagekasse", o guichê de ingressos de última hora (ou seja, não vende ingressos), com um papel na mão, em que está escrito: "procuro ingressos"' (suche karten). Os mesmos indivíduos ficam ali dias e dias, sem obterem resultados. Talvez esses sejam os derradeiros wagneritas.
Os apóstatas da fé hoje dominam o templo. E nada melhor que os franceses e japoneses para julgar a moda. Este é o ano dos estilistas em Bayreuth. A alemã Rosalie, aluna de Jean-Paul Gautier, desenhou as roupas do "Anel". O japonês Yohji Yamamoto assina os figurinos de "Tristão e Isolda", que encerra o evento no domingo. Reinhard Henrich criou as roupas estilizadas para "Parsifal".
A boa música é garantida pela acústica especial do Festspielhaus, que lembra um instrumento de madeira gigantesco em cujas paredes o som é absorvido e equalizado. Mas, além do som, persiste em Bayreuth um aspecto que sempre fez parte do evento: a busca pela aparência, a frivolidade, o exibir de vestidos de gala.
O desfile de modelos ocorre no palco e na platéia. Os intervalos duram mais de uma hora para que o exibicionismo se processe.
Ele encontra o ápice nos aplausos finais, em que o público, cada vez mais histérico, costuma se levantar, gritar, vaiar, aplaudir com as mãos enquanto bate os pés no assoalho de madeira.
Aplaude-se a aparência, não qualquer possível essência da música, ironicamente presente em sua forma absoluta. No Festspielhaus, a obra de arte total se converteu em vaidade total. Não deixa de ser um modo de cultuar a beleza.

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