São Paulo, sexta-feira, 26 de agosto de 1994
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A racionalidade e a vaca

JOSÉ SARNEY

O sonho na política é feito do idealismo de abrir as portas da história e nelas penetrar para mudar o mundo, a vida das pessoas e usufruir da vaidade de ser um benemérito da sociedade.
Não há política sem sonho e sem utopia. Falo da política e não da malandragem política que se nutre na manipulação do povo, com os cordões da demagogia e as práticas de desfrutar o poder para uso pessoal.
Nenhum país, nenhum povo, em nenhum tempo escapou dessa teia. Ela se alimenta de outro idealismo que é inato às sociedades humanas: a esperança.
O homem é diferente dos outros animais não só pela razão, mas pela irracionalidade que ele constrói com a própria razão. Veja-se onde tem de racional a busca de construir o futuro, ser co-autor da obra de Deus, com o material de trabalho de abstração, isto é, o tijolo do nada? Também somos irracionais, e na política a irracionalidade encontra sempre um terreno fértil.
Tomemos a definição dos direitos do homem, de Jefferson, essa síntese extraordinária do idealismo sobre o que devemos ter e ser. Como ele a conclui? Com a expressão do direito "à busca da felicidade". E o que é a felicidade? Um poeta nosso dizia que ela está sempre onde nós não estamos, e onde estamos ela não está.
Mas a outra face da política não é feita de abstrações e sim de realidades. Bismarck a definiu como a "arte do possível". A política lida com fatos. Winner nos advertia que a pior coisa era "uma hipótese contrariada pelos fatos".
Não há racionalidade nem o mínimo de objetividade quando os políticos querem brigar com os fatos.
Não se conformam que eles, os fatos, sejam fatos. Vai desde a revolta com os números das pesquisas até a sustentação de candidaturas inviáveis, que de tão evidente fracasso passam ao domínio do ridículo.
Não façamos qualquer medida de valor com as pessoas e consideremos mesmo que alguns fatos foram imprevisíveis. Mas eles existem e o nosso julgamento é uma forma de palpite pessoal.
Outra tendência, também vazia, é sair em busca de culpados. O processo político é um processo de disputa, o que é legítimo. Não adianta atirar pedras em ninguém. Temos que lidar com os dados da fria realidade.
A sucessão, queiramos ou não queiramos, está polarizada. Não há nenhum vislumbre de algum fato que possa alterá-la.
Nesse quadro, a parte pior e injusta fica com as situações regionais, os candidatos a governador, senador e deputado atingidos pelo processo nacional da bipolarização.
Tenho recebido de todos os recantos do país gritos de reclamação, pedidos de interferência para que chame alguns políticos a ver a realidade.
Minha resposta é uma só, valendo-me do brocardo popular: "O pior cego é aquele que não quer ver". E, muitas vezes, na política há uma política de não querer ver.
Agora, vamos entrar na fase de novas palavras: renúncias, voto útil e salve-se quem puder. O senador Vitorino Freire gostava de dizer que o último mês de qualquer eleição é a "hora de vaca não conhecer bezerro".

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