São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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Religião interfere em voto do eleitor

ANTÔNIO FLÁVIO PIERUCCI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os observadores da cena eleitoral brasileira sabem muito bem que, neste país, pode ser fatal para um candidato, perante um eleitorado de massa, declarar que não acredita em Deus, ou simplesmente vacilar nesta matéria.
Fernando Henrique Cardoso, na campanha para a Prefeitura de São Paulo, em 1985, experimentou na própria carne a gravidade desta falha. Acredita-se que perdeu a eleição por ter hesitado em responder se acreditava em Deus ou não.
Mas o que dizer da religião ou irreligião do eleitor? O fato de alguém não acreditar em Deus influi na decisão do voto? Na hora de escolher entre este ou aquele candidato, qual o peso diferencial da religião do eleitor? Ser católico, protestante, espírita kardecista ou umbandista faz diferença na escolha eleitoral? Pesa na decisão a favor de um candidato que o eleitor seja adepto do Candomblé ou membro de uma CEB (Comunidade Eclesial de Base) católica?
Pesquisa do DataFolha realizada nos dias 16 e 18 de agosto mostra que sim: a religião do eleitor faz diferença.
A filiação religiosa tem peso nada desprezível na direção e no "timing" de uma escolha eleitoral. Dito de outro modo, a distribuição do eleitorado brasileiro pelas diferentes religiões, sua composição religiosa, acaba afetando de modo considerável a distribuição dos votos num determinado momento da campanha e, consequentemente, também o resultado das urnas.
Os dados hoje publicados pelo Datafolha são, em grande parte, desconhecidos não só do grande público, mas também dos cientistas sociais interessados em comportamento eleitoral, como ainda dos que investigam de perto a dinâmica da vida religiosa brasileira.
Ineditismo
Nunca ninguém produziu esse tipo de dado no Brasil. Pela primeira vez, com base em uma amostra de 10.500 entrevistas por todo o país, um levantamento como este traz à tona informações preciosas sobre a complicada relação entre voto e religião e a influência do fator religioso no comportamento do eleitor brasileiro.
Quem poderia imaginar que o candidato do PT à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, fosse mais aceito pelos católicos "pretos e quase pretos" do que pelos brancos (31% e 28% contra 22%), e que, também, entre os sem religião, seu apoio viesse principalmente dos negros e mulatos (34%)?
É verdade que algumas religiões têm muito a ver com etnia, raça, cor. Identidades religiosas, às vezes, recobrem e reforçam identidades étnicas. Assim, é de esperar que os negros e mulatos sejam componentes caudalosos dos grupos religiosos afro-brasileiros, e, de fato, ainda o são.
O que talvez não se esperasse com tamanha evidência, no entanto, é que a proporção de mulatos fosse mais alta nas fileiras pentecostais do que entre os adeptos dos cultos afro-brasileiros (33% contra 28%).
Outra informação nova e surpreendente é sobre as tendências políticas dos espíritas kardecistas, além dos dados eloquentes sobre seu perfil sócio-econômico e sua inserção na rede urbana.
Altamente escolarizados (25% com curso superior), a maior parte deles residindo em regiões metropolitanas (55%) e em grandes cidades (68%), os espíritas kardecistas se concentram nas duas faixas mais altas de renda familiar. É fácil deduzir que eles votem majoritariamente em FHC, e, de fato, assim pretendem fazer.
A receptividade de FHC entre os espíritas kardecistas é a mais alta no contexto das religiões (45%), acima do seu desempenho no total do eleitorado (41%). O alinhamento com FHC não anda junto com maior rejeição a Lula. Pelo contrário, a taxa de rejeição ao petista, neste contingente religioso, é a mais baixa: 32%, ao passo que, no total da amostra, é de 36%.
Católicos
Entre os eleitores católicos, 36% rejeitam Lula, rejeitado, igualmente, por 36% dos protestantes históricos, bem abaixo dos 42% de pentecostais que resistem ao seu nome. Faz sentido, diante deste dado, que, entre as mulheres pentecostais, a taxa de rejeição a Lula tenha atingido o pico mais elevado, nada menos de 45%.
Quando se introduz a variável sexo nos cruzamentos, a relação de distanciamento dos eleitores pentecostais da candidatura Lula adquire linhas bem mais nítidas.
Se a taxa mais baixa de intenções de voto em Lula vem das mulheres pentecostais (apenas 15% votariam no petista), elas, por outro lado, constituem o grupo de eleitores mais indecisos a essa altura da campanha: 20% delas ainda não sabem em quem votar.
A pesquisa indica que 45% delas não votariam em Lula de modo algum. Também entre as mulheres das outras igrejas protestantes é bastante fraca a receptividade do candidato do PT: apenas 16%.
CEBs
O pólo oposto dos baixos desempenhos de Lula entre as mulheres protestantes muda de religião, mas também de sexo e se instala entre os católicos de CEBs do sexo masculino: 52% deles pretendem votar em Lula.
Nichos religiosos simétricos: fortíssima rejeição a Lula junto aos pentecostais, sobretudo mulheres; altíssima identificação com a candidatura Lula junto aos católicos das CEBs, sobretudo homens.
Tal dado mostra bem como é fundamental a variável sexo na explicação de certas diferenças políticas, principalmente em se tratando de pessoas muito religiosas.
Além, portanto, das novas informações, a pesquisa veio confirmar, com novas evidências, tendências mais ou menos sabidas, ou, pelo menos, largamente esperadas, de diferentes possibilidades de misturar religião e política.
No total do eleitorado, Lula recebe, nesta pesquisa, 24% das intenções de voto. Entre os membros das CEBs, porém, atinge o pico de 38%. Em compensação, sua aceitação entre os pentecostais não passa de 18%.
A informação nova fica por conta dos evangélicos não-pentecostais. Por uma série de razões, deles se esperava comportamento diverso do verificado entre os pentecostais. Mas não. Somente 18% dos protestantes históricos pretendem votar em Lula, mesmo patamar observado entre os pentecostais.
Trata-se de uma inesperada coincidência na conduta eleitoral dos dois ramos de evangélicos, a indicar que, na atual campanha, são os meios protestantes os mais avessos às propostas eleitorais da esquerda.
Em tempo: por falta de informação confiável e de larga escala, a composição religiosa da população brasileira e as reais dimensões de cada segmento religioso costumam ser mal-avaliadas.
Exemplo flagrante disto é o caso dos pentecostais. Seu número relativo na população brasileira tem sido o mais das vezes superdimensionado. Em época de eleição sobretudo, um pouco como resultado da própria visibilidade buscada pelas lideranças e candidatos pentecostais, há a tendência de se superestimar o tamanho do eleitorado "crente".
Quantos são?
Recentemente, tem-se falado que os pentecostais no Brasil já são 35 milhões; cálculos mais conservadores arriscam 15 milhões, até mesmo 25 milhões. Só que ninguém mediu, ninguém contou; ou, se o fez, não divulgou. Enquanto não for publicado o Censo Demográfico de 1991, a discussão ficaria patinando nessa dança de números e estimativas, não fosse a iniciativa do DataFolha de ir atrás de informação mais exata.
Com isto, além dos dados eleitorais, a contribuição mais importante desta ampla pesquisa reside na informação trazida a respeito do tamanho do rebanho pentecostal em nosso país.
Com o eleitorado brasileiro beirando a casa dos 95 milhões, os eleitores pentecostais são nove milhões e meio.
É uma bela fatia, não há dúvida, mas bem inferior aos alardeados 35 milhões. A meu ver, basta uma informação como esta para selar a relevância de uma pesquisa grande como esta, feita pelo DataFolha entre os dias 16 e 18 de agosto.
Antonio Flávio Pierucci é professor doutor do Departamento de Sociologia da USP e Secretário Executivo da ANPOCS

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