São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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O Estado deve antes servir à sociedade

OSIRIS LOPES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Estado brasileiro tem se caracterizado, regra geral, por prestar serviços públicos à comunidade em nível insuficiente e de má qualidade. Constitui lugar comum criticar-se a atuação estatal no cumprimento de suas atribuições.
A insatisfação popular não se concentra em uma área específica da ação estatal, mas alcança os governos federal, estadual e municipal, abrangendo também os poderes Judiciário e Legislativo.
A ação estatal no país não é, portanto, legitimada pela população. Gastos supérfluos, políticas concentradoras de renda, corrupção, malversação de recursos, obras faraônicas, suntuosas e desnecessárias, clientelismo, fisiologismo, apadrinhamentos.
É longa e triste a lista das mazelas do gasto público, que impedem a identificação do povo com o que é realizado pelo Estado.
Essa situação é obviamente indesejada e cumpre efetuar esforços para superá-la. Afinal, que falha ocorre na organização e no funcionamento do Estado brasileiro, que enseja tantos equívocos e desencontros com os anseios e com a opinião da sociedade?
O receituário para corrigir a anormalidade é vasto e variado. Mas a maior parte das receitas e soluções tem sido representada sempre por planejamentos com enfoques macroeconômico ou social, com olímpico desdenhar para o detalhes da execução.
Planejam-se maravilhas nas pranchetas e planilhas. Pouco ou nada se cuida da execução. A fixação dos objetivos, o estabelecimento das regras, a determinação teórica dos meios, enfeixados em uma justificação bem-elaborada parecem, para a tecnocracia elaboradora, a obra-prima final.
Concluído o plano no papel, extasiado com a riqueza e o esplendor do trabalho realizado, pode o tecnocrata de plantão ter os seus orgasmos de satisfação.
Falta ao serviço público a prática fundamental da administração. Administrar hoje no país é cuidar de todos os detalhes, esforçar-se para que não sejam desdenhados, pois a execução do serviço não pode prescindir do cumprimento cuidadoso de cada etapa.
O longo prazo faz-se por um somatório do dia-a-dia. Não adianta pensar o futuro, sonhar com a sua realização, se no quotidiano a ação executada ou negligenciada está em contradição com o planejado.
Há uma profunda amnésia no país. A ilusão do novo encanta os tecnocratas criadores. As experiências do passado são abominadas e, em consequência, ignoradas, até porque não se sabe onde estão os seus registros. As coisas são feitas como se brotassem de gênios originais e inovadores.
Os acompanhamentos, as avaliações, as fiscalizações, enfim, os instrumentos de controle são, quando realizados, dotados de características meramente formais, como se diz, "para inglês ver", sem profundidade e consistência.
Mas o equívoco fundamental do governo é a sua volúpia por obras. Pontes, viadutos, prédios, piscinas, fontes luminosas, memoriais, desvio de leitos de rios, hidroelétricas, a gama de obras e construções é incomensurável.
O país não necessita de um Estado construtor. Ele deve ser um prestador de serviços públicos, onde as obras, as instalações, são facilidades para a execução das suas finalidades, que visam o bem-comum, o bem-estar do povo.
Desta forma, a edificação destinada à escola só tem sentido se efetivamente for utilizada com a finalidade básica e primordial de viabilizar a educação. Esta, sim, é o objetivo maior a ser alcançado. E deve ser transmitida com alto grau de qualidade e eficácia.
A febre avassaladora de construções deve ser substituída pela utilização potencializada das instalações existentes. Chega de construir o novo e destruir o que existe. É hora de usar o que existe, elevando a qualidade e o grau da prestação dos serviços pelo Estado à sociedade. As obras atendem mais aos interesses das empreiteiras do que aos do público.
É chegado o momento de se levantar a infra-estrutura existente e disponível e buscar a maneira de usá-la da melhor forma possível para a prestação adequada dos serviços públicos. Não cabe mais o descaso com a educação, a saúde, a assistência social, a segurança e a justiça, que são direitos essenciais e prioritários da sociedade.
Gente, eis outro ponto fundamental. O governo federal, por exemplo, está a construir uma antinomia que impede que seja alcançada a boa execução dos serviços que lhe estão afetos.
Trata o servidor público, e esta é uma característica dos últimos governos, como se fosse um pária irrecuperável. Destrói os ideais, inviabiliza a melhoria da prestação de serviços ao não investir no aprimoramento e na qualificação de seus quadros.
O Estado, por mais poderoso que seja, é sobretudo uma construção jurídico-constitucional.
Alguns teóricos entendem que ele se confunde com o próprio ordenamento jurídico do país. Mas a sua materialização, seja como administração ou governo, quem lhe dá é o servidor público, que lhe fornece a feição externa e o seu funcionamento efetivo.
Permitir a proliferação do descrédito do servidor público, dar-lhe atestado de ineficiência, omitir-se diante da campanha de sua difamação, desvalorizá-lo, desmotivá-lo, incutir-lhe o desprestígio, incentivar-lhe a desmotivação e, para culminar, condená-lo a vencimentos aviltantes, significa renunciar à adequada, saudável e necessária boa prestação do serviço público que o país necessita, significa o homicídio doloso da função estatal.
Treinar permanentemente o servidor, prestigiá-lo, criar níveis de excelência, transmitir-lhe técnicas e conhecimentos para que aprimore o grau de prestação de serviços, eis o que se espera de um governo que tenha o mínimo compromisso com a população.
A questão salarial, através da atribuição de vencimentos dignos, será consequência da melhoria da prestação dos serviços públicos pelos sevidores públicos.
O espetáculo deprimente desempenhado pelo governo federal nos últimos tempos, discutindo interminavelmente acerca de que miserável disponibilidade dispunha para recompor (não aumentar) os vencimentos dos servidores, consiste na exibição contraditória da renúncia governamental de cumprir suas finalidades.
Ou será o sinal de uma nova era de um governo contratualista, em que a execução dos serviços públicos, mesmo os mais essenciais, serão objeto da terceirização, nomenclatura misteriosa para agasalhar a rendição estatal diante da voracidade dos empreiteiros de obras e de serviços, sob a fantasia da racionalização.
A Comissão Parlamentar de Inquérito do Orçamento e a do Paulo César Farias demonstraram o que tais profissionais e empresas podem realizar em detrimento do interesse público e da ética na administração da coisa pública.
É hora de mudar. Encerrar o ciclo de discussão ministerial sobre a política de vencimento do servidor e dar-lhe um mínimo de dignidade salarial, além de tratar de organizar a estrutura da administração para dar-lhe maior funcionalidade e eficácia, equacionar as carreiras, iniciar um programa de qualificação do servidor, realizando com regularidade concursos, treinamentos, formação e reciclagem, de sorte que a sociedade usufrua de uma melhor execução com o aprimoramento da qualidade dos serviços que o Estado tem o dever-poder de ministrar.

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