São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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O que se oculta mais fundo

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DAVI ARRIGUCI JR.

O que se oculta mais fundo
-dência inquieta de Mário para as formas artísticas mais abertas, transformadas em objeto de discussão nas páginas de "O Banquete", do início da década de 40 (2).
Tem que ver com isso, certamente, o gosto tão expandido entre os modernos pelo inacabado, conceito essencial às idéias estéticas de Mário, como se vê naquele diálogo, mas também questão central para sua obra, cuja realização, condicionada à combatividade e aos compromissos sociais de uma determinada poética com o momento histórico, é, ao mesmo tempo, impulsionada pela reflexão permanente sobre a natureza da arte e as exigências de intemporalidade. Esse conflito, que às vezes se traduz no debate teórico entre as técnicas do inacabado e as imposições do acabamento, como em "O Banquete", ocupa na verdade um largo espaço na dinâmica interna de seus textos, onde é, com frequência, bem visível a tensão entre os impulsos à combatividade, com os riscos do inacabado, e a aceitação tranquilizadora do acabamento, que o afasta dos móveis mais radicais e dinâmicos que acionam seu espírito irrequieto.
As técnicas do inacabado são por certo modos de abertura da obra, e o tema, que viraria moda na década de 60, já se colocava então como um traço convidativo à participação da arte de combate. Assim, um caso como o presente, de um achado que permite ver por dentro a própria dinâmica do processo de composição, é então mais do que convidativo e insinuante, tornando-se revelador da ligação profunda entre as idéias teóricas do autor e o modo de dar forma de sua prática artística. Por outro lado, demonstra como essa prática concreta se conformava a evitar os riscos da inserção nas questões que o momento propunha à poética inconformista do escritor, posta por vezes entre parêntesis para se acomodar ao acabamento estético tranquilizador.
O conto, na versão mais acabada, é claramente menos ousado e radical do que seu esboço na caderneta de viagem, sinal de que o artista, cedendo às imposições do acabamento, se esquivou também do que não podia dizer, embora de início ousasse fazê-lo. Esta tensão em nenhum momento se anula na versão final, de modo que mesmo ali o combate ainda se trava surdamente, descobrindo-se, num mesmo gesto, a alma do artista junto com as das suas personagens.
Como aconteceu, entre outros casos, com a segunda versão de }Amar, Verbo intransitivo (3), a tendência à forma idealizada do idílio –termo com que o autor resolveu batizar genericamente e com certa razão ambas as narrativas– representa uma acentuada atenuação no tratamento temático da sexualidade, na linguagem e na própria atitude do narrador, muito mais intrometido e mordente na primeira, inclusive nos acenos diretos ao leitor.
Aqui, o tema do envolvimento sexual de duas meninas na flor dos anos e, ao mesmo tempo, de uma mulher mais velha, com um jovem efebo, é progressivamente coibido em seus aspectos transgressivos. As fantasias do escritor parecem envolver não apenas as três mulheres, mas também a figura masculina, curiosa imagem narcísica espelhada, quem sabe, nas águas amazônicas, projeção provável de algum companheiro de viagem –um inesperado Josafá que se junta à farândola do barco– de mistura com traços do próprio escritor. O resultado é, porém, logo amenizado pela associação com um tema de caução bíblica como o do vale de Josafá –o rei todo bondade e o lugar do julgamento do Senhor–, e a versão mais desenvolvida acaba purificada de todo pecado no banho providencial.
No esboço, o rapaz não apenas deflora as meninas, mas as ensina a roubar; na conjunção explosiva de sexo com pilhagem, a contundência antiburguesa ficava desde logo evidente. Na última versão, o ato transgressivo, que embora sugerido todo o tempo, permanece ambíguo, é, por assim dizer, lavado em águas lustrais do riacho de chuva, ao qual cabe também levar embora, simbolicamente, a virgindade das molecas e do rapaz. Dissolve-se, pois, na natureza idílica a tensão sexual armada no decorrer do relato.
Isto significa que o escritor, ao distanciar de suas próprias relações de classe, tende a atenuar as instâncias mais cruas da sexualidade, para acomodá-las a uma visão algo edificante do conhecimento e resgate do outro, mais pobre e desprotegido na ordem das coisas da sociedade capitalista. O teor de verdade das relações aparece então diminuído por uma espécie de álibi da consciência social, que impõe um tema construtivo superposto às exigências subreptícias do desejo: condizente com isto, o acabamento recobre uma inquietude sem nome que se perde na errância e se interrompe aleatoriamente num momento.
Nem por isto, contudo, o banho, em que desemboca a narrativa, é literariamente menos admirável, em sua pureza lúdica e força lírica. Trata-se de um alto momento de revelação ou reconhecimento em que, natural e inconscientemente, a interioridade dos seres se descobre ao deixar-se tocar pelo desejo. Brincadeira tão já macunaímica –não custa recordar que, para o herói de nossa gente, brincar é manter relação sexual–, que culmina numa epifania nas águas sem pecado.
Mas, de todos os modos, à medida que o acabamento do conto avança, se vão polindo as garras do texto. A prosa se faz mais comedida, sem o dengo sensual; a ficção se redobra em máscaras: o longo percurso do ladrãozinho inglês parece fazer uma curva inverossímil para chegar até o matinho da periferia de São Paulo, onde se dá a inesperada cena do seu banho com as meninas. E de resto se perde bastante da contundência crítica e da irreverência, que eram a marca modernista de Mário.
Nesse sentido, é evidente que se deve considerar os palpos de aranha do tema da transgressão sexual na década de 20, complicado com as duros condicionamentos de classe e as pressões ideológicas que pesavam sobre o escritor. Ele, que já aparece, no diário de bordo, algo intimidadado e desenxabido em questões de vestimenta perante a senhora ilustre da alta burguesia, a "Rainha" do café, como não estaria ao ter de lidar, naquele espaço de liberdade e aventura, com a viúva cinquentona, mas muito ainda potável que devia de ser Dona Olívia Guedes Penteado, e as desfrutáveis pimpolhas, que o espionavam por um buraquinho da cabine do barco? A situação era muito ambígua e, no meio da roda de jogos e brincadeiras que se formou na viagem, que fantasias não acenderia nos olhos das moças a solitária figura do escritor?
É sabido que, por sua vez, Mário já se encantara anteriormente com a filha de D. Olívia, transposta na figura feminina dos poemas de "Tempo de Maria". E não é à toa que a dama toda-poderosa, quase sempre de branco, por ele às vezes chamada de Nossa Senhora, é vista, por fim, à maneira da tia castradora de "Vestida de Preto", virando a mulatona Dona Maria, no último desdobramento do conto, mas sempre com seu olhão de "Juízo Final" em cima das sôfregas mocinhas que tinha sob sua custódia, metonimicamente presas à sua figura como revelam os nomes de "Balança" e "Trombeta", impondo com irônica ressonância a norma da justiça angelical.
Nada disso, porém, tira a graça e o encanto dessa história em sua versão mais acabada. Nela, o agudo olhar do narrador, cheio já da mais pura malícia macunaímica, em que a safadeza é sempre de uma inocência primigênia, capta a poesia dos corpos e das almas simples, despojados de vestes e pecados. É na pobreza nua, à margem da cidade grande, que o escritor resgata o sentido da aventura errante do seu desejo, fazendo-o renascer com pureza edênica. De fato, aquelas pobres criaturas se voltam em flor, ao serem lavadas da miséria, já bastante suja, da metrópole moderna, mesmo se nas duvidosas águas de um corguinho de periferia paulistana, onde até então parecia possível reconhecer ainda a natureza.
Tudo isto significa, portanto, que no idílio não deixa de aflorar, conforme esse termo tão vasto e tão misterioso que é também a Natureza, o que se oculta no mais fundo.

NOTAS
(1) Ver "Première Leçon du Cours de Poétique". In: "Variété, Oeuvres", Gallimard (1957) (Col. "Bibliothèque de la Pléiade"), tomo 1, pág. 1343.
(2) Ver. Andrade, M. – "O Banquete", Livraria Duas Cidades (1977), sobretudo págs. 61-62.
(3) Como se sabe, a primeira versão, datada de 1923-1924, foi publicada por Antonio Tisi em 1927; a versão modificada é da década de 40.

DAVI ARRIGUCCI é professor de teoria literária e literatura comparada na USP. É autor de "O Escorpião Encalacrado" (editora Perspectiva) e "Humildade, Paixão e Morte" em Manuel Bandeira (Companhia das Letras)

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