São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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O que se oculta mais fundo

DAVI ARRIGUCCI JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1927, aos 34 anos, Mário de Andrade viveu a experiência ímpar de uma viagem ao norte do Brasil na companhia de duas belas mocinhas de 15 anos e de uma elegante mulher madura, embarcados em alegre camaradagem ao longo dos rios amazônicos. A viagem, em princípio uma excursão modernista para coleta de material etnográfico e reconhecimento do País, parece ter dado também em outras praias, tornando-se importante para o escritor, sob vários aspectos. Foi parcialmente relatada, como se sabe, no diário de bordo de "O Turista Aprendiz"; nem tudo, porém, se acha ali.
Além dos elementos de pesquisa literária decerto carreados, pouco depois, para o "Macunaíma" (1928), a repercussão dessa experiência na fantasia do escritor só agora, com a publicação de "Balança, Trombeta e Battleship", pode ser avaliada em toda a sua força, pela esteira que deixa em sua prosa de ficção. Ou antes, na ficção inacabada, multiplicada em versões e variantes labirínticas em que vão se esgarçando os retalhos daquela realidade distante, mas não antes de nos deixar um bom número de indagações sobre a transposição literária da experiência na arte de Mário. Por sob a espuma ligeira do que se foi, ficou um turbilhão que ora vem à tona num texto inédito, descoberto entre os guardados do autor.
O leitor acompanha neste livro o processo de criação dessa nova obra, interrompida a certa altura, sem a demão final: um pequeno conto centrado numa situação única, provavelmente inspirada naquele grupo de viagem, através das várias versões que foi tomando ao longo do tempo. O primeiro momento da narrativa é um esboço numa caderneta da época da viagem; o desenvolvimento, mudanças e versão mais acabada são posteriores, envolvendo mesmo a publicação de um pequeno trecho do relato na revista "Presença", da vanguarda portuguesa, já em 1940.
Esse longo processo de produção do texto, na aparência corriqueiro, ganha aqui um intenso fascínio, abrindo para questões do maior interesse crítico que provam a relevância do achado. E isto, sem falar na secreta história das relações erótico-sentimentais do escritor com sua aprazível companhia de viagem, o que em larga medida se pode reconstruir ou imaginar melhor daqui por diante.
Um notável trabalho de crítica textual, feito por Telê Ancona Lopez, permite a quem lê o gradativo descobrimento da gênese dessa história: desde a mais funda origem, quando a situação vivida durante a viagem se incorpora à experiência do escritor, até todo o desdobrar-se do processo de composição, quando ela é visada diversas vezes em recortes diferentes de escrita e representação literária.
Chama de pronto a atenção como o tema da sexualidade, que se coloca de algum modo na situação vivida pelo escritor e permanece mais ou menos latente no diário de bordo exposto em "O Turista Aprendiz", ganha logo a maior projeção, articulando-se em profundidade com as relações de classe das personagens que a vivem na transposição ficcional, desde os primeiros momentos do texto. Tudo indica que o escritor tinha nas mãos um assunto da maior riqueza e complexidade, e o desafio não era dos menores, dada a delicadeza das questões envolvidas.
Com efeito, Mário desloca mais de uma vez o quadro social das personagens e suas relações ao dar tratamento ficcional à experiência com as figuras da alta sociedade paulistana. Num primeiro esboço da narrativa, um jovem "pickpocket" inglês vem aportar em São Paulo, onde conhece as duas mocinhas –Balança e Trombeta– e a senhora mãe de uma delas; o ambiente é suburbano, pequeno-burguês, e o argumento começa a se enredar quando o moço se transfere para um cômodo atrás da casinha da Lapa, em que as moças, jovens costureirinhas, vivem em família. Na versão mais desenvolvida, o ladrãozinho inglês, depois de virar mundo, vem dar em São Paulo, onde descobre, atrás do Jockey Club, a miséria da periferia paulistana, atraído pela curiosidade que uma menininha sujíssima desperta nele: parece estar, como ele, roubando, mas na verdade pede esmolas, acaba por segui-la até o rancho, à beira de um riachinho, onde mora com uma velha, que se diz sua mãe, e mais outra menina, encardidas as duas também na mais absoluta pobreza.
Como se vê, o escritor se afasta progressivamente das relações de classe implicadas na experiência real, buscando distância e estratos mais pobres da sociedade e omitindo a esfera biográfica pessoal. As consequências disso para o tratamento do tema da sexualidade no desenvolvimento ficcional do argumento não serão poucas, como se verá adiante, mas é preciso assinalar, desde logo, que a questão do relacionamento sexual continua sempre presente, embora sofra, a cada passo, transformações decisivas. O fato é que, intimamente relacionado ao tema, o tratamento artístico também muda, abrindo espaço para uma reflexão mais geral sobre a arte do escritor. Convém, no entanto, ir com calma aos pontos principais.
A reconstrução textual, propiciada por Telê, permite ainda que se dêem asas à imaginação junto com o artista que concebeu o conto; parece impossível não segui-lo na busca daquilo que se mostra, se esquiva e se esconde a uma só vez, retornando sempre a seu horizonte de expectativas como uma obsessão: movimentos vivos do desejo, que adeja e erra sem termo, apenas, num momento, de repente para sempre interrompido. O que se torna evidente não são, pois, somente as relações eróticas em jogo no tema, mas o caráter erótico do próprio processo, em cujas intermitências se espelha o objeto esquivo que se busca alcançar.
Na verdade, há algo de alado e ligeiro nesses esboços de texto que não perfazem a idéia fugidia, mas persistem na perseguição. São a dança do escritor em meio às formas esvoaçantes do passado que o perseguem sem cessar e que ele, por sua vez, persegue sem poder agarrar de todo, pois que não se entregam numa forma única e acabada. Busca erótica e poética a um só tempo, onde a fantasia, com um dos pés no real, dá um baile na ficção: imaginário que não se converteu em símbolo definitivo e permanence errante na ausência.
A dificuldade de simbolizar experimentada pelo narrador é aqui um fator de revelação do modo de ser de sua arte, pois implica o que se pode dizer, ou não, e a forma de fazê-lo. Pode-se seguir, como em nenhuma outra vez, os passos desse artista moderno, combativo e inconformista que foi Mário, altamente consciente de seu ofício e sempre querendo fazer melhor, aferrado à meticulosa e tenaz labuta com que procurou dar forma a um projeto que parecia envolvê-lo completamente. Alguns dos temas preferidos do ensaísta, em suas preocupações psicanalíticas –o "sequestro da dona ausente", "amor e medo"–, como lembram os comentários de Telê, apareciam agora implicados na matéria mesma de ficção em que se transmudava a experiência pessoal.
Descobrem-se para nós, desse modo, os movimentos de um espírito às voltas com o próprio objeto da criação, presa do desejo que não se cumpre, enredado nas circunstâncias que presidiram à gênese da narrativa. Ao mesmo tempo, porém, ele se mostra igualmente num sentido oposto, escapando dos móveis reais, cada vez mais desgarrado dos vários e perigosos focos da paixão, sublimada, ao que parece, nos contornos progressivamente mais nítidos da escrita que dissolve e recobre as turbulências da alma. Nunca ele se mostrou assim tão a nu, com sinceridade de fato tão sincera, em seu processo de composição, mesmo quando paradoxalmente se esconde mediante o gradual apagamento das marcas de origem.
Numa passagem famosa, Paul Valéry destaca a curiosidade que nos desperta um processo como esse, capaz de gerar um interesse tão vivo, que somos levados a considerar com mais complacência, e até com mais paixão, a ação de fazer do que a própria coisa feita (1). Algo essencial para a sensibilidade moderna se cumpre assim no prazer intelectual do processo desvelado, dos bastidores postos às claras, do método tomado por si mesmo, do projeto em realce maior que o resultado. Sob este aspecto, a modernidade tão evidente no andamento da composição desta narrativa em esboços recorrentes, alusiva e marcada por uma transitoriedade inscrita nas suas próprias mudanças, revela a ten-
Continua na pág. 6-9

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