São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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Obsessão pela morte dominou vida de Canetti

SÉRGIO AUGUSTO
DA SUCURSAL DO RIO

A erudição, a vivência, a obstinação, o recato, o amor pelos animais –reduzidos a um mínimo são estes os atributos que mais admirava em Elias Canetti. Como um montão de gente, não só o descobri com atraso como, ao ouvir seu nome pela primeira vez, pensei tratar-se de algum escritor de origem italiana. E é claro que só com ajuda alheia pude identificá-lo como o modelo do professor Mischa Fox do romance "The Flight from the Enchanter", escrito por Iris Murdoch há 38 anos. Quem me ajudou não foi William Amos, autor de um bom dicionário de personagens "à clef" publicado em meados da década passada, sem Mischa Fox nem Canetti em seu índice, mas Susan Sontag.
Mischa Fox é um sujeito algo excêntrico que intimida, involuntariamente, os amigos com sua audácia e sua superioridade natural, ao mesmo tempo em que os fascina com sua maior virtude, a paciência. Desconheco outros heróis ficcionais inspirados no escritor, salvo seu maldisfarçado alter ego Peter Kien, o "scholar" recluso de "Auto-de-Fé", o único romance de Canetti.
Modelar produto da cultura livresca, Kien acredita que "a melhor definição de pátria é a biblioteca". Discordo. Como Rilke, Nabokov e boa parte da humanidade, acho que é a infância. É possível que o próprio Canetti achasse isso também, mas a sua alegoria precisava de material metafórico mais palpável e durável que a infância. Os 25 mil livros que o obsessivo sinólogo de "Auto-de-Fé" tanto venera e de repente perde equivalem aos torrões que Canetti foi obrigado a deixar para trás: o primeiro dos quais a Bulgária, onde nasceu, às margens do Danúbio.
(A propósito, enquanto esteve guardado, sob a forma de manuscrito, "Auto-de-Fé" intitulava-se "Kant Pega Fogo". Não exatamente porque houvesse obras do filósofo alemão na incendiada biblioteca de Kien, mas porque seu dono era homônimo do velho Immanuel. Às vésperas de o romance ir para a gráfica, Kant, por sugestao de Hermann Broch, virou Kien.)
Infância
Menino prodígio e metidinho, com um avô paterno que falava 17 línguas, Canetti passou os primeiros seis anos de vida ouvindo sete a oito dialetos diferentes na cidade onde morava. Já lia Shakespeare aos dez e cedo também tornou-se íntimo do teatro clássico grego. Aos 16, jurou à mãe que seria um sábio. A exemplo de Kien, pretendia conhecer rigorosamente tudo: e muito se esforçou nesse sentido. Viveu sob cinco línguas. Saber muitos idiomas era uma maneira de não se cingir a uma nacionalidade, luxo proibido aos exilados por natureza ou obrigação.
Teve a sorte de viver numa época gloriosa, do ponto de vista cultural, embora complicada do ponto de vista político, e de passar pelos lugares certos nos momentos adequados: Viena, antes, durante e depois da Primeira Guerra; Berlim, nos anos 20; Londres, a partir de 1939. Também estudou em Zurique, enclave de Joyce, Tristan Tzara e outros tantos exilados ilustres, inclusive Lenin.
A bibliofilia foi vício genético, alimentado pela mãe depois que o pai morreu, em 1912. Curiosa Jocasta, a sra. Mathilde Canetti. Volúvel em seu paladar literário, falava pelos cotovelos e raramente tinha para os filhos um gesto de carinho. Por culpa dela, Canetti fixou-se na língua alemã –mas, para espicaçá-la um pouco, aprendeu também alemão suíço, que ela considerava um "dialeto vulgar".
Com o mesmo propósito, já que ela odiava ciências, bandeou-se para o curso de química na Universidade de Viena. As picuinhas faziam parte da devoção filial, mais claramente perceptível nas qualidades que herdou de Mathilde: a obstinação (dedicou duas décadas e meia à feitura de "Massa e Poder"), a independência intelectual (orgulhava-se de ser um historiador sem influência de Hegel e Marx) e, por fim mas não por último, a rapidez de raciocínio.
Também puxou a mãe nos defeitos: nenhum mais notório que a misoginia. Mathilde detestava mulheres. O filho não chegava a tanto (casou-se duas vezes), mas tinha pouco respeito pelo sexo feminino. Em "Auto-de-Fé", Kien sugere a extinção da mulher; ou, no mínimo, constata a sua inutilidade. "Que fizeram as mulheres na História?", ele pergunta. E responde: "Filhos e intrigas".
A importância dos pais na formação e na memória afetiva do escritor pode ser avaliada pelo peso que à morte dos dois ele deu, no primeiro ("A Lingua Absolvida") e no terceiro ("Jogos do Olhar") volumes de suas memórias. O pai morreu precocemente, aos 30 anos, um quarto de século antes da mãe; e não há porque duvidar que o obsessivo horror de Canetti pela morte tenha por origem o infarto paterno.
"Enquanto existir a morte, nenhuma beleza será bela e nenhuma bondade, boa", proclamou em meio a uma saudação aos 50 anos de Hermann Broch, em 1936. Por isso, sempre que podia, exaltava o seu oposto, a sobrevivência, a vida, a longevidade. Incomodava-se com a rapidez com que nós, ao contrário das tartarugas, passamos por este mundo. Segundo ele, o homem é mau porque dura pouco. Chegou a conformar-se com a possibilidade de um século de vida, mas ambicionava, mesmo, o triplo, invejando os 337 anos de Emilia Makropulos, heroína de uma peça ("O Caso Makropulos") escrita por Karel Capek em 1922.
Tanatofobia
A morte era o tema axial de sua primeira obra a merecer divulgação, a peca "Hochzeit" (As Bodas), é presença constante em suas memórias, ronda e reina sobre o desfecho do seu único romance e alimenta o que a sua monumental reflexão sobre o violência e a multidão possui de mais peculiar: a História pensada como um acúmulo de cadáveres, como um desalentador "memento mori". No mesmo ano em que publicou "Massa e Poder", deixou claro que não havia esmorecido em sua luta, apesar dos reveses: "Até agora não consegui fazer nada contra a morte". Só entregaria os pontos de vez 34 anos mais tarde.
Seu fascínio por cartas e diários era uma espécie de compensação de sua tanatofobia. Em cartas e diários, a vida pulsa e corre solta. Considerava os diários de Cesare Pavese superiores à sua obra ficcional. Encantou-se por uns tempos com os de um peregrino chinês que andou pela Índia no século 17 e, mais ainda, com os dos japoneses do século passado, a seu ver, "mais precisos e sutis que Proust".
No terreno epistolar, nada parece tê-lo sensibilizado mais que as cartas de Kafka a Felice, às quais dedicou um belo e caudaloso ensaio, incluído em "A Consciência das Palavras". Se você não o leu, faça-o já. Até porque, como diria Canetti, não lhe resta muito tempo.

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