São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994 |
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Obsessão pela morte dominou vida de Canetti
SÉRGIO AUGUSTO
Mischa Fox é um sujeito algo excêntrico que intimida, involuntariamente, os amigos com sua audácia e sua superioridade natural, ao mesmo tempo em que os fascina com sua maior virtude, a paciência. Desconheco outros heróis ficcionais inspirados no escritor, salvo seu maldisfarçado alter ego Peter Kien, o "scholar" recluso de "Auto-de-Fé", o único romance de Canetti. Modelar produto da cultura livresca, Kien acredita que "a melhor definição de pátria é a biblioteca". Discordo. Como Rilke, Nabokov e boa parte da humanidade, acho que é a infância. É possível que o próprio Canetti achasse isso também, mas a sua alegoria precisava de material metafórico mais palpável e durável que a infância. Os 25 mil livros que o obsessivo sinólogo de "Auto-de-Fé" tanto venera e de repente perde equivalem aos torrões que Canetti foi obrigado a deixar para trás: o primeiro dos quais a Bulgária, onde nasceu, às margens do Danúbio. (A propósito, enquanto esteve guardado, sob a forma de manuscrito, "Auto-de-Fé" intitulava-se "Kant Pega Fogo". Não exatamente porque houvesse obras do filósofo alemão na incendiada biblioteca de Kien, mas porque seu dono era homônimo do velho Immanuel. Às vésperas de o romance ir para a gráfica, Kant, por sugestao de Hermann Broch, virou Kien.) Infância Menino prodígio e metidinho, com um avô paterno que falava 17 línguas, Canetti passou os primeiros seis anos de vida ouvindo sete a oito dialetos diferentes na cidade onde morava. Já lia Shakespeare aos dez e cedo também tornou-se íntimo do teatro clássico grego. Aos 16, jurou à mãe que seria um sábio. A exemplo de Kien, pretendia conhecer rigorosamente tudo: e muito se esforçou nesse sentido. Viveu sob cinco línguas. Saber muitos idiomas era uma maneira de não se cingir a uma nacionalidade, luxo proibido aos exilados por natureza ou obrigação. Teve a sorte de viver numa época gloriosa, do ponto de vista cultural, embora complicada do ponto de vista político, e de passar pelos lugares certos nos momentos adequados: Viena, antes, durante e depois da Primeira Guerra; Berlim, nos anos 20; Londres, a partir de 1939. Também estudou em Zurique, enclave de Joyce, Tristan Tzara e outros tantos exilados ilustres, inclusive Lenin. A bibliofilia foi vício genético, alimentado pela mãe depois que o pai morreu, em 1912. Curiosa Jocasta, a sra. Mathilde Canetti. Volúvel em seu paladar literário, falava pelos cotovelos e raramente tinha para os filhos um gesto de carinho. Por culpa dela, Canetti fixou-se na língua alemã –mas, para espicaçá-la um pouco, aprendeu também alemão suíço, que ela considerava um "dialeto vulgar". Com o mesmo propósito, já que ela odiava ciências, bandeou-se para o curso de química na Universidade de Viena. As picuinhas faziam parte da devoção filial, mais claramente perceptível nas qualidades que herdou de Mathilde: a obstinação (dedicou duas décadas e meia à feitura de "Massa e Poder"), a independência intelectual (orgulhava-se de ser um historiador sem influência de Hegel e Marx) e, por fim mas não por último, a rapidez de raciocínio. Também puxou a mãe nos defeitos: nenhum mais notório que a misoginia. Mathilde detestava mulheres. O filho não chegava a tanto (casou-se duas vezes), mas tinha pouco respeito pelo sexo feminino. Em "Auto-de-Fé", Kien sugere a extinção da mulher; ou, no mínimo, constata a sua inutilidade. "Que fizeram as mulheres na História?", ele pergunta. E responde: "Filhos e intrigas". A importância dos pais na formação e na memória afetiva do escritor pode ser avaliada pelo peso que à morte dos dois ele deu, no primeiro ("A Lingua Absolvida") e no terceiro ("Jogos do Olhar") volumes de suas memórias. O pai morreu precocemente, aos 30 anos, um quarto de século antes da mãe; e não há porque duvidar que o obsessivo horror de Canetti pela morte tenha por origem o infarto paterno. "Enquanto existir a morte, nenhuma beleza será bela e nenhuma bondade, boa", proclamou em meio a uma saudação aos 50 anos de Hermann Broch, em 1936. Por isso, sempre que podia, exaltava o seu oposto, a sobrevivência, a vida, a longevidade. Incomodava-se com a rapidez com que nós, ao contrário das tartarugas, passamos por este mundo. Segundo ele, o homem é mau porque dura pouco. Chegou a conformar-se com a possibilidade de um século de vida, mas ambicionava, mesmo, o triplo, invejando os 337 anos de Emilia Makropulos, heroína de uma peça ("O Caso Makropulos") escrita por Karel Capek em 1922. Tanatofobia A morte era o tema axial de sua primeira obra a merecer divulgação, a peca "Hochzeit" (As Bodas), é presença constante em suas memórias, ronda e reina sobre o desfecho do seu único romance e alimenta o que a sua monumental reflexão sobre o violência e a multidão possui de mais peculiar: a História pensada como um acúmulo de cadáveres, como um desalentador "memento mori". No mesmo ano em que publicou "Massa e Poder", deixou claro que não havia esmorecido em sua luta, apesar dos reveses: "Até agora não consegui fazer nada contra a morte". Só entregaria os pontos de vez 34 anos mais tarde. Seu fascínio por cartas e diários era uma espécie de compensação de sua tanatofobia. Em cartas e diários, a vida pulsa e corre solta. Considerava os diários de Cesare Pavese superiores à sua obra ficcional. Encantou-se por uns tempos com os de um peregrino chinês que andou pela Índia no século 17 e, mais ainda, com os dos japoneses do século passado, a seu ver, "mais precisos e sutis que Proust". No terreno epistolar, nada parece tê-lo sensibilizado mais que as cartas de Kafka a Felice, às quais dedicou um belo e caudaloso ensaio, incluído em "A Consciência das Palavras". Se você não o leu, faça-o já. Até porque, como diria Canetti, não lhe resta muito tempo. Texto Anterior: IDEOGRAMA ; COQUETEL Próximo Texto: Autor foi singular nos mais diversos gêneros Índice |
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