São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Autor foi singular nos mais diversos gêneros

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Elias Canetti nasceu na primeira década do século e morreu na última. É bem possível que venha a representá-lo para a posteridade, não como algo típico, nem sequer como seu contrário, mas enquanto uma enfática objeção. O que era mais típico, porém, do que sua atipicidade?
Em primeiro lugar, ele não possuía uma nacionalidade facilmenter caracterizável. Oriundo da Bulgária, sem ser búlgaro, morreu na Suíça, que tampouco era seu país.
Viveu na Áustria, na Alemanha e na Inglaterra, sem que qualquer um desses países possa reclamá-lo como seu.
A língua em que escrevia –o alemão– era apenas uma pátria de adoção, por ser a terceira que aprendeu, depois do ladino (o espanhol arcaico que os judeus conservaram depois de terem sido expulsos, no século 15, da Península Ibérica) e do inglês.
Em segundo lugar, não praticava um gênero determinado, mas muitos, cada um à sua própria maneira. Canetti escreveu um romance, três volumes de memórias, vários ensaios, dois de aforismos, um de "caracteres", um tratado antropo-sociológico, reminiscências de viagem e outras tantas peças teatrais.
Cada uma de suas obras é singular e, a rigor, inclassificável. O significado de sua obra como um todo, no entanto, mal começou a ser realmente avaliado.
Ainda assim, a confusão geográfica não é exatamente incomum na literatura contemporânea, cujos melhores representantes têm praticado seus respectivos gêneros de formas pouquíssimo convencionais.
Em outras palavras, o que há de mais estranho em Canetti é justamente o que melhor o define como cidadão do seu tempo. Ele pertence não só à linhagem do diferente, mas também à da discordância.
Sua peculiaridade: ele discordava sobretudo do modo corriqueiro de discordar. Revelou assim os aspectos mais terríveis da realidade, sem nunca fundar um partido ou abrir um consultório.
Ele preferiu até o fim manter uma objeção solitária contra tudo que o desagradava, principalmente contra a morte. Não apenas a sua própria, mas qualquer morte: nossa morte.

Texto Anterior: Obsessão pela morte dominou vida de Canetti
Próximo Texto: De malandros e imigrantes
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.