São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Antunes é exaltado e diminuído em ensaio

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

"Antunes Filho e a Dimensão Utópica" é um trabalho dedicado a provar que "Vereda da Salvação", talvez o maior fracasso da carreira do encenador e com certeza o fracasso que fechou o Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, é na realidade um espetáculo mais importante do que "Macunaíma", tida como a grande contribuição de Antunes às artes brasileiras.
Não apenas isso, mas também que "Vereda", na encenação de 1964, é um espetáculo de "profeta", a forma encontrada pelo autor do livro, Sebastião Milaré, para dizer que Antunes Filho adiantou-se a Augusto Boal, do Arena, e sobretudo Zé Celso, do Oficina, na grande mudança dos anos 60. Não falta sequer uma comparação de Antunes com Judith Malina.
Para tanto, o livro cita e rejeita o que o próprio Antunes disse sobre suas encenações anteriores a "Macunaíma", que estreou em 1978. "Em entrevista recente, referindo-se ao que motivou a virada na sua carreira com 'Macunaíma', Antunes Filho afirmou ter olhado ao espelho e dito: 'Vergonha'." Segundo Sebastião Milaré, foi uma "vergonha hiperbólica".
Para tanto, por outro lado, dá menos de três páginas a "Macunaíma", contra 30 para "Vereda". Para tanto, também, edita a crítica de Décio de Almeida Prado escrita na época, sobre "Vereda", evitando trechos negativos, minimizando outros, e sublinhando aquela única passagem que surgiu elogiosa.
Tudo isso e mais resultou um trabalho que, por sincera e bem-intencionada que fosse a exaltação pretendida, acaba por diminuir o papel histórico de Antunes. Dizer que "Antunes Filho com 'Vereda' fez triunfar a revolução modernista no teatro" ou "o fracasso foi o triunfo" beiram a idolatria.
Há exemplos pelo livro todo. "Amado por muitos e detestado por tantos outros, a ninguém indiferente, Antunes já carregava uma aura mítica." Ou então, "vê-lo dirigir é algo maravilhoso." Ou então, "o imenso amor de Antunes pelo teatro é imenso amor à vida". Ou então, "Antunes Filho é um eterno adolescente, ansioso por descobrir o mundo, apaixonado pela vida e pelas pessoas".
A adulação e o esforço de encontrar uma grande criação no mais emblemático dos fracassos acabam, como se disse, por diminuir o papel de Antunes no teatro brasileiro. "Macunaíma" não só tem pouca ou nenhuma presença no livro, o que poderia ainda ser corrigido, em edição futura, como é citada abertamente como mera consequência do que o diretor fez antes em "Vereda da Salvação".
Para Sebastião Milaré, com "Macunaíma" Antunes apenas "resgatou os processos desenvolvidos em 'Vereda da Salvação"'. Ou seja, "as pesquisas, laboratórios, prospecções cênicas, as relações internas do grupo, tudo derivava das experiências anteriores". A acreditar nele, não houve nada em "Macunaíma" que não tivesse surgido antes, nos anos 60.
É um equívoco fundamental. "Macunaíma" nasceu em oposição ao teatro dos anos 60. Antunes jamais "comungou" com Augusto Boal e Zé Celso, como quer "Antunes Filho e a Dimensão Utópica". Ele comungou com o teatro anterior, aquele do TBC, e estabeleceu, com "Macunaíma", o teatro imediatamente posterior.
A exemplo do diretor americano Robert Wilson, de quem o brasileiro viu e assimilou "A Vida e a Época de Dave Clark" antes de "Macunaíma", o que o livro também se esforça por negar, Antunes Filho definiu o teatro das últimas duas décadas. Acreditar que é apêndice do Arena e do Oficina é diminuir seu lugar na história.

Texto Anterior: De malandros e imigrantes
Próximo Texto: REVISTAS
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.