São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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De malandros e imigrantes

JOSÉ PAULO PAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Se, em vez de uma tese de doutoramento na área de literatura comparada, a instituição universitária a que está profissionalmente ligada Julia Marchetti Polinesio lhe tivesse pedido dois ensaios, um sobre a representação das classes socialmente oprimidas no conto brasileiro, outro sobre idêntica representação no conto italiano, ela teria cumprido a tarefa com desenvoltura e conhecimento de causa. É o que se pode verificar à leitura de "O Conto e as Classes Subalternas", onde esses dois ensaios, substancialmente independentes, estão reunidos sob um título comum.
Além do título, ligam-nos frouxamente entre si uns poucos nexos de similitude que, por ocasionais e extrínsecos, não chegam a justificar a pertinência de uma abordagem comparatista. Mesmo porque a "nenhuma influência recíproca", que na conclusão da sua tese Julia Polinesio menciona a propósito de Mário de Andrade e Federico Tozzi, se estende à totalidade dos contistas brasileiros e italianos por ela estudados.
A abordagem comparatista, que só episódica e timidamente reponta na sua tese, parece ter sido chamada à liça tão-só para atender a uma exigência de ordem acadêmica. Nada disso, porém, empana os méritos, indiscutíveis, dos dois ensaios constitutivos da tese de doutoramento da Julia Polinesio.
Editada agora pela Annablume, num volume de simpática feitura gráfica, mas de texto enfeiado por descuidos da revisão, essa tese consta, como se acabou de dizer, de duas partes bem distintas. A primeira, voltada para a representação das classes populares no conto brasileiro, examina e avalia os contributos que a ela trouxeram sucessivamente Machado de Assis, Coelho Neto, Simões Lopes Neto, Monteiro Lobato, Bernardo Élis e Mario de Andrade, e outros autores menos ilustrativos.
Isso para mais bem situar, num quadro diacrônico, a contística de Rubem Fonseca e João Antônio, a qual é então analisada em mais pormenor como a culminância de um processo de "fusão de voz narrativa com o objeto da representação". No entender de Julia Polinesio, que se louva em conceituação desenvolvida por Antonio Candido a propósito de um romance de Verga, tal fusão assinala o momento de maior "verdade" do empenho de representar literariamente as classes populares.
É de estranhar, todavia, que o itinerário diacrônico traçado por Julia Polinesio não leve em conta os aportes de Graciliano Ramos e Guimarães Rosa ao desenvolvimento desse processo fusional. Os breves capítulos de "Vidas Secas", alguns dos quais originariamente publicados na imprensa como contos, dão mostras de um grau de adesão narrativa ao mundo de retirante sertanejo que até então era inédito entre nós. E nos contos de Guimarães Rosa, cuja linguagem confunde ideação e fala do narrador à ideação e fala dos seus rústicos personagens, a autora de "O Conto e as Classes Subalternas" certamente encontraria ricos subsídios para a sua tese.
A segunda parte do livro retraça idêntico itinerário no conto italiano dos séculos 19 e 20, a partir do contributo por mais de um título extraordinário de Giovanni Verga. Nos contos de Verga, o "narrar-se por si" da ficção verista se fazia acompanhar de uma empatia com a interioridade dos seus personagens campônios que regionalistas subsequentes, como Gabriele D'Annunzio, Grazia Delleda, Federico Tozzi ou Corrado Alvaro, não conseguiram emular.
Tampouco, com a notável exceção de Ignazio Silone, o conseguiram os escritores antifascistas dos anos 30 e 40, a exemplo de Elio Vittorini, Carlo Levi ou Francesco Jovine, apesar do confesso engajamento social do seu popularismo.
Para Julia Polinesio, o distanciamento que por longo tempo vigorou entre os ficcionistas italianos da vertente popularista e o proletariado rural e/ou urbano, do qual no entanto se sentiam próximos humana e ideologicamente, a ponto de nele ir buscar os protagonistas de suas narrativas, deveu-se à "herança cultural" muito forte" de "elite" a que tais ficcionistas estavam ligados. Ligados, quando mais não fosse, pela sua formação culta, que lhes dificultava alcançar aquela "adesão narrativa" capaz de exprimir "verdadeiramente" a gente do povo.
Lembre-se de que se está falando, no caso, de representação literária, onde o verdadeiro só pode existir sob as espécies do verossímil e do convincente, já que em arte, como em nenhum outro lugar, é soberana a divisa pirandelliana do "assim é se lhes parece".
Adesão narrativa convincente e plena do mundo popular, pioneiramente alcançada por Verga na segunda metade do século 19, a autora de "O Conto e as Classes Subalternas" só a vai reencontrar nos contistas italianos da segunda metade do nosso século. Primeiramente nas "Narrativas Sicilianas" publicadas em 1963 por Danilo Dolci, e que não são na verdade criações suas, mas depoimentos que ele tomou no curso de uma pesquisa entre a "parte miserável" da população daquela região da Itália; são, pois, narrativas-depoimentos.
Depois, nos contos operários de Luigi Davi, que põem a nu o lado alienante do grande desenvolvimento industrial que fez da Itália, a partir dos anos 50, um país do chamado primeiro mundo. Nos contos desse autor, que analisa com rara percuciência, Julia Marchetti sublinha o vazio, a despersonalização e a automatização da vida proletária isomorficamente narradas numa linguagem de calculada pobreza e aridez.
Já, pelo que dá entender o enfoque do ensaio de Julia Polinesio –cujo ponto de fuga é a contística de Rubem Fonseca e João Antônio em torno do submundo carioca e paulistano da marginalidade e da viração–, acontece precisamente o contrário entre nós. Aliás, é a malandragem urbana que protagoniza nosso primeiro grande romance, as "Memórias de um Sargento de Milícias", e mesmo um ficcionista politicamente engajado como Jorge Amado teve sempre mais êxito na representação do mundo marginal dos terreiros de santo e da boêmia popular de Salvador que na do mundo proletário das oficinas e das fábricas.
Daí que, também no caso da literatura brasileira, talvez valesse a pena ir procurar, como o fez Julia Polinesio no caso da literatura italiana, os fatores ligados ao nosso desenvolvimento socioeconômico e as peculiaridades da nossa tradição literária que pudessem ajudar a entender tal diferença de enfoque e desempenho.
Aí fica uma possível sugestão para a autora de "O Conto e as Classes Subalternas", livre enfim das injunções probatórias da tese de concurso, desenvolver num outro trabalho as virtualidades especulativas e questionadoras do ensaio, gênero para o qual acaba de mostrar-nos sua inegável vocação.

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