São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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Freud e o complexo de Hamlet

HAROLD BLOOM
ESPECIAL PARA A FOLHA

Erramos: 04/09/94

Edward de Vere, conde de Oxford, nasceu em 1550 e não em 1150 como foi incorretamente publicado. Freud e o complexo de Hamlet
Os escritores centrais do nosso tempo são Freud, Proust, Joyce e Kafka: são eles que personificam o espírito literário da época. Freud descrevia a si mesmo como cientista, mas há de sobreviver como um grande ensaísta, à maneira de Montaigne ou Emerson, e não como o fundador de uma terapia já desacreditada (ou recomendada) como outro episódio na longa história do xamanismo.
A terapia psicanalítica já está moribunda ou morta, mas a sobrevivência da psicanálise só depende dos escritos de Freud. Pode-se objetar que Freud foi um pensador original, além de grande escritor; uma resposta para isso é que Shakespeare, também, foi um pensador, e ainda mais original.
Todo crítico tem, ou deveria ter uma anedota crítica favorita. A minha é comparar a "crítica literária freudiana" ao Sagrado Império Romano: nem sagrado, nem império, nem romano; nem freudiana, nem literária, nem crítica. Freud só tem parte da culpa pelo reducionismo de seus seguidores anglo-americanos; e não lhe cabe responsabilidade alguma pela psicolinguística franco-heideggeriana de Jacques Lacan & Cia. Alegorizações freudianas de Shakespeare são tão insatisfatórias quanto as atuais alegorias neo-historicistas, marxistas ou feministas, ou as antigas interpretações moralizadoras ou cristãs das peças.
Essencialmente, Freud é Shakespeare prosificado: a visão freudiana da psicologia humana é derivada, de forma não inteiramente inconsciente, de sua leitura das peças. Mas não seria correto dizer que Freud "gostava" de Shakespeare, como gostava de Goethe ou Milton. Não se pode, talvez, nem dizer que sentia-se ambivalente com relação a ele. Freud não "gostava" da Bíblia, nem expressava ambivalência por ela e Shakespeare, muito mais do que a Bíblia, veio a se tornar a autoridade secreta de Freud, o pai que ele não podia reconhecer.
Estranhamente, Freud associava, num certo plano, Shakespeare com Moisés, como se lê no seu ensaio de 1914 sobre o Moisés de Michelangelo. Anos mais tarde, ele associaria Moisés e Shakespeare de forma indireta: um e outro não eram o que pareciam e Freud se recusava a aceitar a interpretação tradicional dos dois. "Moisés e o Monoteísmo" substitui o profeta hebraico da Bíblia por um egípcio, enquanto que a William Shakespeare é concedida uma existência como ator, mas não como escritor.
Para Freud, Moisés era um egípcio e o Conde de Oxford era o verdadeiro autor das peças e poemas atribuídos a Shakespeare. Esta segunda idéia, inventada por Thomas Looney em seu livro "Shakespeare Identified" (Shakespeare Identificado, 1921) é ainda mais maluca do que a primeira, mas foi aceita como verdade por Freud até o fim. Edward de Vere, Conde de Oxford, nasceu em 1150 e morreu em 1604. Já estava morto, portanto, antes de Rei Lear, Macbeth, Antônio e Cleópatra e os "romances" da última fase. Para aceitar a hipótese de Looney, é preciso, antes de mais nada, acreditar que o Conde tivesse deixado todas essas obras escritas, no leito de morte. Como pôde Freud, a maior mente, talvez, do nosso século, empolgar-se com semelhante absurdo?
O desejo de Freud de que Shakespeare não fosse Shakespeare assumiria uma variedade de formas, além dessa, incluindo a sugestão de um acadêmico italiano, para quem o nome do dramaturgo era a versão de um suposto autor "Jacques Pierre"! Não importava a Freud que o Conde já estivesse morto antes de Lear ser escrito. Importava, sim, que Lear, como Oxford, tinha três filhas. Aqui, como em outros detalhes, Freud persegue desesperadamente uma leitura das peças como revelações autobiográficas. Numa carta a Arnold Zweig (2 de abril de 1937), Freud faz o que pode para converter seu amigo à doutrina de Looney:
"É inconcebível para mim que Shakespeare tenha se valido de tudo em segunda mão –a neurose de Hamlet, a loucura de Lear, os desafios de Macbeth e o caráter de Lady Macbeth, o ciúme de Otelo etc. Fico quase irritado ao pensar que você sustenta essa opinião."
São palavras que deixam qualquer um boquiaberto. Eis aí uma mente poderosíssima e sofisticada, em pleno domínio de suas forças; nada menos que a consciência da nossa época, como Montaigne foi a consciência da era de Shakespeare. A mente de Shakespeare, como Freud sabe, mas se recusa a admitir, era a consciência de todas as eras, e os séculos futuros estarão, para sempre, correndo atrás dela. Mas Freud descreve a imaginação shakespeareana como um tomar de tudo "em segunda mão".
Freud, aqui, mostra-se francamente defensivo. É como se ele precisasse ter um Hamlet escrito por Hamlet, Lear por Lear, Macbeth por Macbeth e Otelo por Otelo. O que parece se deduzir é que o próprio Freud teria escrito seu Hamlet na "Interpretação dos Sonhos", seu Lear nos "Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade", seu Otelo em "Inibição, Sintoma e Angústia" e seu Macbeth em "Para Além do Princípio do Prazer". O bom homem de Stratford não poderia jamais ter inventado a psicologia freudiana; o Conde de Oxford, nobre, poderoso, excêntrico, também não, mas poderia ao menos tê-la vivido, ao contrário do humilde ator William.
A não ser para os freudianos mais religiosos, essa é a antiga história da influência literária e suas angústias. O inventor da psicanálise é Shakespeare; Freud, seu codificador. Hamlet não tinha complexo de Édipo, mas Freud com certeza tinha um complexo de Hamlet e a psicanálise talvez não seja outra coisa senão um complexo de Shakespeare.
A crítica literária freudiana das peças de Shakespeare é uma grande piada; a crítica shakespeareana de Freud vai ter um parto difícil, mas acabará nascendo, porque Freud como escritor há de sobreviver à morte da psicanálise. Transferências xamânicas são uma técnica universal e venerável de cura. O xamanismo precedeu e sobreviverá, também, à psicanálise: é a mais pura forma de psiquiatria dinâmica. Mas a obra de Freud –que é a descrição total da natureza humana– transcende em muito à terapia. Shakespeare está por todos os lados em Freud, e tão mais presente quando não é citado. De Shakespeare, Freud aprendeu o que é a angústia, como aprendeu o que é a ambivalência, o narcisismo e as divisões da identidade. Emerson, mais livre e original com respeito a Shakespeare, porque aprendera com ele o desregramento e a estranheza, pode ficar com a última palavra: "Agora a literatura, a filosofia e o pensamento estão shakespearizados. Sua mente é o nosso horizonte, além do qual não se pode ver nada."

Tradução de Arthur Nestrovski

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