São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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Caso insignificante pode arruinar Clinton

CARL BERNSTEIN

Se alguém duvida que o auto-interesse, e não o interesse nacional, é a moeda corrente em Washington, o caso Whitewater fornece ampla confirmação. É a culminação de um quarto de século de hipocrisia, mentiras e poses por parte de presidentes, imprensa e escritores de aluguel.
Desta vez, o resultado pode ser trágico: tomar uma série de questões aparentemente insignificantes que deveriam ter sido decididas na campanha eleitoral de 1992 –e transformá-las na diminuição e talvez ruína da primeira Presidência em uma geração que trata com seriedade os problemas nacionais.
Quanto ao caso Whitewater, eu li demais sobre o assunto e não aprendi o bastante para compensar o esforço gasto. Mas, a menos que surja toda uma nova conspiração descoberta pelos esforços do promotor especial, do Congresso ou da imprensa, Whitewater não é Watergate –ou qualquer coisa que se assemelhe.
Bill Clinton não abusou de sua autoridade presidencial, como fez Richard Nixon e até mesmo Ronald Reagan. Ele não fomentou esquemas ilegais ou inconstitucionais para atingir seus objetivos políticos, a julgar pelos fatos revelados até agora. Mas a distinção pode tornar-se insignificante na atual atmosfera de partidarismo fanático e estardalhaço de mídia.
O fato mais importante conhecido até hoje sobre o caso Whitewater é que aconteceu 15 anos atrás. O presidente Clinton está sendo julgado pelos seus padrões éticos quando governador. Além do mais, sua atuação está sendo considerada deficiente por membros de uma classe política no Congresso que, em muitos casos, alimentou-se das mesmas fontes estaduais de favorecimento que Clinton usou.
Mas foi a falta de franqueza de Bill e Hillary Rodham Clinton que garantiu que essa história sórdida prosseguisse indefinidamente. As audiências no Congresso começaram em 26 de julho passado; o promotor especial vai ter trabalho por pelo menos mais um ano.
As liberdades que os Clintons tomaram para com a verdade garantiram que o Congresso e a imprensa se mantivessem nos caminhos previsíveis. Eles rumam para um problema de credibilidade que, no país de "talk-shows", pode atingir proporções dignas de Nixon ou Lyndon Johnson.
O pior é que, diferente de Reagan, que tinha seus problemas com a verdade, Clinton é agora visto como um líder menos que forte. O caso é bem diferente das obstruções à Justiça praticadas por Nixon, ou do encobrimento do caso Irã-Contras.
Se Clinton conspirou com seus auxiliares para mentir a "grandes júris" (que decidem pelo indiciamento ou não dos acusados) ou pagar colegas pelo seu silêncio (como fez Nixon), a imprensa não descobriu provas.
Mas os Clintons e sua Presidência têm um ônus especial a carregar. Vieram a Washington no trem das mudanças e reformas políticas. E de fato trouxeram mudanças significativas para o pântano de inércia e indiferença da capital.
Mas é impossível conseguir reforma política genuína enquanto se praticam os mesmos velhos truques, sem trazer novos valores a Washington. Essa foi a promessa do governo Clinton: que a brisa da verdade sopraria através da negação e patologia a respeito das dificuldades dos EUA. A "nova política" estaria baseada na realidade.
Para isso acontecer o presidente não poderia contar a verdade apenas em tempo parcial. Teria que romper o padrão de fraude que, por uma geração, deu forma ao que passa por debate político em Washington: um padrão sob o qual poses passam por princípios, processos são mais valorizados que políticas e os mais urgentes negócios nacionais são descuidados.
Assim, para que a Presidência de Clinton obtivesse sucesso nos termos em que ele aspirava ao cargo –honestidade sobre os nossos problemas e os meios disponíveis para resolvê-los, a começar da saúde econômica do país–, um novo padrão de franqueza presidencial precisaria ser estabelecido, especialmente depois das falsidades de Lyndon Johnson sobre o Vietnã, Nixon sobre Watergate, e das explicações canhestras dadas por Ronald Reagan e George Bush sobre o caso Irã-Contras e o fornecimento de armas ao Iraque.
O dilema da campanha de 1992 foi sempre o fato de Clinton nos ter prometido a verdade, e termos comprado a promessa –porque ele contou a verdade sobre quase tudo, exceto ele mesmo. Clinton estava certo em seu julgamento de que o povo se preocupava mais com o serviço de saúde do que com as acusações que lhe foram dirigidas por Gennifer Flowers.
Mas estava errado ao acreditar que a maioria das pessoas aceitava suas respostas autocomplacentes sobre algumas questões pessoais duras surgidas na campanha; e continua errado ao supor que as pessoas aceitam suas torturadas explicações sobre mercados futuros de gado e o lobby do frango.
Vamos encarar os fatos: os Clintons embolsaram algum no Arkansas. É hora de admiti-lo; de reconhecer os gritantes conflitos de interesse, e qualquer outra impropriedade que possa ter havido.
Clinton concorreu à Presidência sob a bandeira de uma "Nova Era": a coragem de mudar. A dificuldade é que Clinton prometeu, implicitamente, não só mudança para o país, mas mudança pessoal. Talvez seja essa sua vulnerabilidade política no caso Whitewater: ele parece não ter mudado.
O fato de que verdades deixaram de ser ditas, de que lhe falta franqueza, aquilo que, na campanha eleitoral, tornou-se conhecido como a questão do "caráter", são agora parte de sua Presidência. Surpreendentemente, a questão da franqueza –e caráter– estende-se agora a Hillary Clinton.
Pior, as respostas do governo às suas substanciais falhas e inconsistências, às diferenças entre princípio e prática da Bósnia ao Haiti, passaram a ser descritas na mesma espécie de contexto defensivo e apenas semiverossímil que marca o caso Whitewater.
A Presidência de Clinton corre o risco de marginalização. Ele deixou de ocupar o terreno politicamente mais vantajoso –ainda que os fatos e a opinião pública continuem do seu lado.
Hoje, Clinton é uma presença muito menos inspiradora na vida mental do país do que nos dias que se seguiram à sua eleição ou ao seu primoroso discurso sobre o Estado da União –mesmo que a sua eloquência e ousadia em confrontar alguns dos verdadeiros problemas da sociedade civil se tenham tornado mais aparentes.
Suas explicações sobre as inconsistências entre sua retórica de campanha e as políticas que adotou –sobre homossexuais nas Forças Armadas, o abandono de pessoas que indicou para o governo quando encontraram problemas, sua hesitação sobre a reforma do sistema de financiamento de campanhas eleitorais–, tudo se encaixa no padrão das respostas dos Clintons ao caso Whitewater.
Os problemas de Clinton –com a imprensa, o Congresso e o povo– devem-se à percepção cada vez mais generalizada de que os americanos correm o risco de voltar aos velhos tempos.
Escrevo isso sem deixar de acreditar no potencial de Clinton como presidente. Ele alterou os termos do debate. É o mais bem informado presidente de nossa era.
Clinton é articulado, e claramente aprecia seu trabalho. Tem os instintos políticos necessários a um grande líder. Além disso, está vencendo: seu programa econômico básico está sendo implementado. Um certo grau de reforma do sistema de saúde será obtido.
Ele fala com sensatez e compaixão sobre crime, valores familiares e questões raciais. Foi eleito para mudar o país e a forma pela qual as coisas são feitas em Washington, e sua agenda continua a refletir essa promessa. Mas tudo isso pode desaparecer junto com os escombros da Whitewater.
Se Clinton sucumbir àquela parte dele que procura fugir à verdade, à parte que fuma mas não traga, ele está acabado. Se pensa que a lição de sua campanha eleitoral é a de que foi ajudado pelos equívocos, a de que errou e escapou –quanto ao alistamento militar, quanto à sua vida pessoal–, ele está cortejando o desastre.
A imprensa inevitavelmente fará disso a questão central de sua Presidência –não importa que programas ou realizações substanciais tenham sido conduzidos.
Clinton está sob o assédio de inimigos partidários e jornalistas irresponsáveis desde que assumiu o cargo. Com alguma justificativa, ele despreza a imprensa. Mas os jornalistas estariam mais interessados na verdade se ela não exigisse atenção ao contexto.
Daí a cobertura exagerada e distorcida do caso Whitewater. Mas as questões legítimas suscitadas por algumas reportagens merecem respostas honestas e rápidas. E até agora não foram dadas.
Ao eleger Clinton, o país reuniu a coragem para mudar que ele pediu. Agora, Clinton deve reunir a mesma coragem. O destino de sua Presidência pode estar em jogo.

Tradução de Paulo Migliacci

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